Nomes críticos ao papa Francisco buscam ocupar vácuo deixado pelo antecessor em era de mudanças no Vaticano
Porto Velho, RO - Quase dez anos depois de uma coabitação inédita no Vaticano, em que um papa conviveu de perto com seu antecessor, o pontificado de Francisco entrou em uma nova fase com a morte de Bento 16.
De um lado, o argentino está ainda mais livre para levar adiante sua ideia de igreja, mais global e aberta a reformas. De outro, viu cair uma certa estabilidade existente entre seus opositores, que tinham como referência —e freio— a figura de Joseph Ratzinger. Entre uma situação e outra, está o risco de que a busca por protagonismo entre os conservadores aumente as fissuras entre os dois campos.
O papa emérito nem tinha sido enterrado, quando, dias após a sua morte, uma das vozes mais ariscas a Francisco aumentou de volume. O arcebispo alemão Georg Gänswein, 66, secretário particular de Bento 16, retomou, em uma entrevista, o tema da missa em latim para criticar Jorge Bergoglio.
Em 2021, Francisco restringiu o rito em latim –anterior ao Concílio Vaticano 2º (1962)–, liberado por decisão de seu antecessor em 2007. A justificativa era de que estava alimentando divisões na igreja. "Isso partiu o coração do papa Bento 16", disse Gänswein.
Na semana passada, o arcebispo lançou sua biografia na Itália, em que repassa outros episódios de tensão com o argentino, como quando foi afastado extraoficialmente das funções de prefeito da Casa Pontifícia, cargo para o qual havia sido nomeado por Ratzinger. Na última segunda (9), Francisco recebeu Gänswein. Dias depois, segundo a imprensa alemã, teria pedido que ele deixasse, até o final do mês, o monastério em que morava com o papa morto.
Apesar da proximidade com Ratzinger, Gänswein não é considerado uma personalidade com potencial para liderar a ala conservadora da igreja, mas sua eloquência ilustra a movimentação dos órfãos de Bento.
"O que está em curso é uma disputa para ver quem é o verdadeiro herdeiro e porta-voz ratzingeriano. Não existe um líder indiscutível", explica Massimo Faggioli, professor do departamento de teologia e estudos religiosos da Universidade Villanova, nos EUA. "O livro de Gänswein contém críticas que não são só a Francisco, mas também a prelados conservadores que eram próximos de Bento 16. A situação é confusa."
Nos EUA, onde a oposição a Francisco ganhou espessura nos últimos anos, a questão litúrgica, como a missa em latim, contribuiu para reforçar a distância entre os grupos. "É um tema sobre o qual houve uma diferença clara de opinião e de decisão entre os dois papas, e isso, nos EUA, foi se agravando com o tempo e não acho que vai diminuir", diz Faggioli.
No alto clero norte-americano, estão alguns nomes conhecidos por críticas a Francisco e que têm chance de ocupar o vácuo deixado por Ratzinger. É o caso do cardeal Raymond Burke, 74, de perfil tradicionalista e que fez parte da campanha para que a comunhão ao presidente Joe Biden fosse negada devido à sua posição em relação a direitos reprodutivos. Em nível pessoal, o líder americano já manifestou oposição ao aborto, com a ressalva de que, tendo sido eleito democraticamente, não pode impor suas opiniões ao país que governa.
O recém-nomeado chefe da conferência dos bispos dos EUA, Timothy Broglio, 71, também pertence à ala mais conservadora e pode ganhar visibilidade nos próximos meses. Outro protagonista da frente anti-Bergoglio é o cardeal Robert Sarah, 77, da Guiné. Há três anos, ele escreveu um livro que defendia o celibato de sacerdotes, e a princípio trazia o nome de Bento 16 como coautor, abrindo uma polêmica com Francisco —e entre os dois papas. A questão, porém, teria danificado seu relacionamento com o alemão, o que o deixa enfraquecido.
Para Faggioli, tanto Burke quanto Sarah estão em segundo plano, atrás do cardeal alemão Gerhard Müller, 75, ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, um dos órgãos responsáveis por estabelecer diretrizes da igreja. Apesar de ter sido nomeado cardeal por Francisco, ele era muito próximo de Bento 16. "É o candidato mais em evidência e o mais forte, sob alguns pontos de vista, com bons relacionamentos internacionais na Itália, na Alemanha e nos EUA", avalia o professor.
Crítico à reversão feita por Francisco da missa em latim, Müller considerou a decisão uma "imprudência" do papa por ter ignorado os fiéis ligados à liturgia antiga. "Sugiro ao papa que seja mais atento a todas as sensibilidades dentro da igreja, inclusive aquelas mais distantes das suas", disse, dias após o funeral de Ratzinger, ao jornal italiano La Stampa.
Na visão de Francesco Peloso, vaticanista do jornal italiano Domani, tanto Müller quanto Burke despontam como líderes dos conservadores, mas com grande distância em relação ao papa emérito. "Não tem ninguém com condição de se colocar como herdeiro de Bento 16, porque a estatura teológica e cultural dele era muito alta. Era um conservador, mas sabia dialogar com todos, apesar de ter posições duras em alguns temas", afirma.
A parte do clero que se contrapõe às ideias mais progressistas de Francisco pode ser dividida em dois grupos. Os conservadores assumem tons mais moderados e se mostram mais dispostos a debater alguns temas com o papa, enquanto a corrente tradicionalista é rígida. "A ala fundamentalista se fazia representar de um modo um pouco equivocado por Bento 16. Essa turma ficou órfã", diz Peloso.
De toda forma, avalia o vaticanista, a definição de quem pode assumir a vaga de porta-voz tanto de conservadores quanto de tradicionalistas passa pela necessidade de se recolocar em um mundo e uma igreja em contínua transformação. "Precisam encontrar uma liderança que não seja só um representante de valores superados, de uma igreja que entra em conflito com a modernidade, mas sim que seja capaz de dialogar com a modernidade", afirma Peloso.
Se a bola agora está no campo conservador, a ala mais identificada com Francisco tem como desafio o processo sinodal iniciado em 2021 e que terá duas assembleias, em outubro deste ano e em outubro de 2024, quando será finalizado. Considerado o maior movimento de consulta da história da igreja, o sínodo da sinodalidade, como é chamado, tem como escopo fazer uma reflexão, desde as paróquias até os bispos, sobre reformas e o futuro do catolicismo.
Para Peloso, a mudança mais importante até agora do pontificado de Francisco tem a ver com a abertura de espaço para uma discussão verdadeira na igreja, um fato realmente novo. "Ele construiu um método para tomar decisões. Complicado, porque a Igreja Católica é complexa, com muitas culturas, nações e sensibilidades distintas, não são só diferenças ideológicas dentro do Vaticano."
Visto como a experimentação de um debate de grande amplitude sobre temas como uma maior abertura à participação das mulheres e o celibato obrigatório, o processo sinodal pode ser um teste para a unidade da igreja ao contrapor visões antagônicas, como a dos EUA, de maioria conservadora, e a da Alemanha, mais progressista.
É devido à importância dos próximos meses que observadores afastam a possibilidade de renúncia iminente do papa, diante de boatos de que ele estaria à espera da morte de Bento 16 para se demitir. Aos 86 anos, Francisco passou por uma cirurgia no intestino em 2021, além de ter problemas nos joelhos que o levaram a usar cadeira de rodas com mais frequência.
"Acho que a renúncia não está na ordem do dia, a não ser que venham emergências de saúde. O que vai acontecer até 2024, no sínodo, será o legado mais importante de Francisco. E acho que ele quer guiar esse processo como papa", avalia professor Faggioli.
O vaticanista Peloso concorda. "O papa está ainda mais livre para agir, e até por isso penso que não vá se demitir agora. Quer experimentar pelo menos um pouco esse percurso de ser o único papa."
Fonte: Folha de São Paulo
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