Klaus Schwab diz que mundo vive ‘era dos talentos’ e defende que país dê um salto em educação digital
Sou um curioso. Há quase 25 anos, eu rodo o Brasil de ponta a ponta entrando na casa das famílias e principalmente ouvindo os brasileiros, seus desejos, sonhos e necessidades. Como não sei passar diante de um problema e não me sentir parte de sua solução, tenho dedicado boa parte do meu tempo para unir e agir em torno de formulações de políticas públicas que ajudem a fazer do Brasil um país mais justo e mais eficiente.
Seis anos atrás, essa jornada me levou às portas do Fórum Econômico Mundial (FEM), uma organização sem fins lucrativos que reúne anualmente em Davos, na Suíça, especialistas (e curiosos!) do mundo todo para o enfrentamento de problemas globais. Convidado desde então, o FEM me tem sido um espaço muito importante de escuta e aprendizado. E de diálogo também.
Uma das pessoas com que pude trocar ideias foi Klaus Schwab, 85 anos, o homem que dirige o fórum desde que o fundou, em 1971. Que privilégio ouvir uma liderança que viu as Uniões Soviéticas de Leonid Brejnev e de Mikhail Gorbatchev e as Rússias de Boris Ieltsin e Vladimir Putin. Ou que conversou com tantos presidentes norte-americanos, de Richard Nixon a Bill Clinton, de Ronald Reagan a Barack Obama.
É um erro, porém, qualificar este economista e engenheiro alemão de mera testemunha de grandes momentos da história. Há mais de 50 anos, ele atua como articulador e pensador, sendo uma das vozes mais agudas e recorrentes na defesa da cooperação internacional e do capitalismo de impacto social. A rigor, hoje ninguém estaria falando na agenda ESG (ambiental, social e governança) não fosse por ele.
Schwab está no Brasil como parte de um giro internacional pós-pandemia. A seguir, os melhores momentos da conversa que tivemos logo depois de seu desembarque, reduzida e editada para dar prioridade às mensagens tão importantes que ele se empenha a passar.
No ano em que eu nasci, 1971, nascia também o Fórum Econômico Mundial. O que mudou nesses 52 anos em relação à pauta e à curadoria? E no mundo? Quais foram as grandes mudanças ao longo de sua atuação?
O mundo se tornou bem mais complexo, e os movimentos, muito mais rápidos. Isso exige conhecimento sistêmico e liderança. É preciso resistir à tentação de encontrar soluções simples para questões complexas. Em vez de um conhecimento vertical, hoje é importante termos pessoas com um conhecimento horizontal, que liguem os pontos de diferentes questões.
Se eu pudesse ter um desejo atendido, seria que todo mundo —especialmente os políticos, tão sobrecarregados com tantas crises ao mesmo tempo— focasse neste momento em fazer a gestão da transformação. Isso significa ter uma visão de longo prazo e, em seguida, unir as forças das sociedades em torno do objetivo de sair dessa transformação em um estágio melhor do que o atual.
Hoje há uma enorme importância da tecnologia em nossa vida cotidiana, até mesmo na vida política. Estamos vendo agora uma competição pela liderança global baseada no comando e no domínio da tecnologia.
Outra coisa que temos testemunhado, principalmente nos últimos anos, é um pensamento que não leva em conta apenas a dimensão econômica, mas muito mais o bem-estar das pessoas, o bem-estar da natureza. E essa é, na verdade, a origem do Fórum.
Escrevi, em 1970, um livro que criou o conceito do “capitalismo de stakeholders”, o que significa que as empresas não devem se preocupar apenas com seus acionistas, mas também com a sociedade. E é para isso que tenho lutado. As empresas têm de criar prosperidade, têm de servir às pessoas e têm de cuidar do planeta. Sei que não é fácil equilibrar essas três partes. Mas o essencial é que podemos fazê-lo se estimularmos o máximo possível de empreendedorismo e inovação.
O PIB ainda é o índice que avalia o desenvolvimento de um país. Mas quem sabe isso seja algo a ser discutido na próxima edição do Fórum, não acha?
Concordo. O Fórum tem incentivado muito os chamados critérios ESG (ambiental, social e governança), o que significa que uma empresa não deve ser medida apenas de acordo com seu resultado financeiro, mas também em relação à sua responsabilidade ambiental, ao seu impacto social e aos princípios de governança que está aplicando. Nós precisamos fazer o mesmo com os países. Os países deveriam começar a passar por uma avaliação com base nos critérios ESG.
O Brasil ainda não conseguiu nem endereçar os desafios do século passado e vai ter que enfrentar os que já se apresentam neste novo século. Enquanto discutimos uma atrapalhada lei para regulação da internet, pensadores do mundo todo apontam os desafios que a inteligência artificial vai nos impor. Você publicou um livro sobre isso em 2016, lançando o conceito da “quarta revolução industrial”. A humanidade está em risco com a evolução da IA?
Todas as tecnologias da quarta revolução industrial terão um impacto sistêmico fundamental em nossas vidas. Não só a inteligência artificial, mas também outras tecnologias, como blockchain e computação quântica. Todas elas precisam ser desenvolvidas a serviço da sociedade e do ser humano. Ou seja, devem seguir certos princípios, certas restrições éticas.
Os governos e as empresas têm que trabalhar em estreita colaboração para isso. Temos várias plataformas no Fórum criadas no metaverso e de inteligência artificial para garantir que manteremos essas tecnologias sob controle e evitarmos um impacto negativo.
Tomemos, por exemplo, a invenção das capacidades nucleares, que certamente tinham o mesmo potencial de destruir a humanidade, e conseguimos mantê-las sob controle até agora.
Qual será o impacto da IA em países em desenvolvimento como o Brasil, em que a evolução da qualidade da educação pública com certeza não irá acompanhar a velocidade da substituição de postos de trabalho pela tecnologia autônoma?
Quando observamos as revoluções industriais anteriores, geralmente o capital era um fator decisivo. Hoje são os talentos. Eu digo que não vivemos mais a era do capital. Nós vivemos a era do talento.
Mesmo para um país que ainda não é um país altamente industrializado, investir em talentos é absolutamente essencial. Os jovens são o tesouro do Brasil.
Mas é necessário criar os sistemas educacionais necessários. Construir a infraestrutura digital é absolutamente fundamental. O Brasil tem um sistema universitário muito bom até certo ponto. Mas tem de criar muito mais empreendedores. O empreendedorismo e a inovação são fundamentais para o futuro.
O Brasil ainda vive em uma cruel loteria do CEP. No Brasil, o lugar onde você nasceu praticamente determina o número de oportunidades que você vai ter na vida. Esse é o nosso maior desafio: acabar com a loteria do CEP em relação às oportunidades. E isso tem a ver com educação.
Sim, mas com uma educação com recursos digitais, com inteligência artificial, com sistemas de ensino de acordo com as necessidades individuais de cada um —e de todos.
O que eu quero dizer é que há um enorme potencial de acesso democrático. Um país como o Brasil tem que olhar as novas tecnologias como uma oportunidade de se desenvolver.
Vejo com muita frequência um país em desenvolvimento querendo recuperar o tempo que perdeu em outras revoluções industriais. E caminhando a passos lentos na tentativa de fazer parte de revoluções industriais anteriores. Essa é uma perspectiva errada, pois os novos recursos tecnológicos ajudariam a dar um salto de desenvolvimento. É preciso uma abordagem sistêmica.
Não acredito que no período de uma geração o Brasil será capaz de produzir calçados mais baratos que a China ou condutores melhores que Taiwan. Mas temos tudo para ser a maior potência verde do planeta.
Acho que estamos passando por um período de repensar essa pauta mundialmente. Sabemos há algum tempo o quanto precisamos descarbonizar a economia. Mas agora a noção de biodiversidade entrou na consciência global. As pessoas têm de estar cientes de que a natureza precisa ser regenerada.
E de que as soluções baseadas na natureza para muitos problemas podem ser —e serão— economicamente muito atraentes. Basta pensar em um superalimento para dar um exemplo bem simples. Haverá uma demanda global por soluções baseadas na natureza.
E, é claro, quando olho para o mundo, vejo que estamos nos movendo para um sistema multifacetado e de múltiplas potências no mundo. E a maior potência natural da Terra é, sem dúvidas, o Brasil, e isso oferece uma grande oportunidade para seu futuro.
Nesta conversa você já enfatizou que as empresas não são apenas unidades econômicas, mas organismos sociais. Neste momento, de crise global, essa perspectiva ainda é verdadeira? Mesmo em tempos econômicos difíceis como os que estamos vivendo agora, quando os líderes empresariais estão lutando para manter vivos seus negócios?
A questão é se você está pensando em curto ou longo prazo. E, se estivermos pensando em longo prazo, acho que é do interesse dos donos e acionistas cultivar as responsabilidades ESG, porque no futuro, se olharmos para as próximas gerações, elas não vão querer trabalhar para uma empresa que destrói o meio ambiente, os consumidores também não, e assim por diante.
Acho que o maior capital que uma empresa pode ter é a confiança. E a confiança não vem apenas do sucesso econômico. A confiança vem também da reputação, de como a empresa lida com o meio ambiente, de como trata seus funcionários e assim por diante.
Confiança leva décadas para conquistar e minutos para perder. É por isso que insisto: você não acha que deveríamos nos preocupar com uma possível onda anti-ESG? As dificuldades econômicas não podem prejudicar as iniciativas que você está tentando promover?
Sempre que há um movimento, há um contramovimento. E sempre é preciso criar um equilíbrio de acordo com a conjuntura. Pode haver situações em que você enfatiza mais a situação econômica quando está enfrentando uma crise, mas, quando estiver em uma boa situação, você pode pensar a longo prazo e enfatizar mais sua responsabilidade ESG.
Como tudo em liderança, isso significa criar os equilíbrios certos nos momentos certos. E é assim que vejo não só a liderança empresarial, mas também a liderança política.
Com o aumento de nacionalismos e das tensões diplomáticas que vimos nos últimos anos, os globalistas estão enfrentando desafios. Você acha que a democracia liberal e os mercados livres podem prevalecer? Se sim, como?
Uma nova ordenação global está surgindo, que é, como mencionei antes, multipolar. Não se trata mais apenas dos EUA e da China. Alguns intermediários, como o Brasil, a Indonésia, a Turquia, o Oriente Médio, de alguma forma se tornam muito influentes no cenário global porque têm algo especial a oferecer —como a comida do Brasil.
Nesse cenário, em que tantos países estão competindo por influência e poder, há um duelo de sistemas democráticos contra sistemas menos democráticos. Veremos quem prevalecerá no futuro, mas acho que vencerão os sistemas que derem o máximo de oportunidades ao seu povo e que mobilizarem o máximo de talentos possível. Mas, para mobilizar talentos, é preciso dar o máximo de liberdade possível a cada pessoa.
Na última edição o Fórum defendeu o lançamento de um “grande reinício” pós-Covid. Em boa medida, porque a pandemia iluminou muitos dos nossos problemas e acelerou decisões que poderiam levar anos para serem tomadas —e que foram anunciadas em semanas. Neste “great reset”, o que o senhor entende ser importante “começar de novo”?
Escrevi o livro "The Great Reset " em meio à pandemia. Minha primeira consideração foi pensar como podemos nos tornar mais resilientes no futuro contra uma crise como aquela? Como podemos nos preparar melhor? A pandemia não é a única crise que enfrentamos. Como humanidade, temos desigualdades no mundo todo. Por isso, me perguntei: como podemos ser mais inclusivos? E depois temos toda a questão ambiental. Se não tomarmos cuidado, estaremos enfrentando uma catástrofe climática em breve.
Então, como tornar o mundo mais resiliente e mais sustentável? Essa é a essência do livro. E, é claro, isso foi interpretado como um começo completamente novo. Mas na verdade não é. Isso é apenas para dizer que temos que mudar até certo ponto nossa causa e ter os objetivos de sustentabilidade, inclusão e resiliência muito mais em mente quando definimos nossas políticas em nível social e em nível empresarial no longo prazo.
Meus filhos me zoam, dizendo que sou um otimista incurável. Apesar de todos os desafios dos tempos atuais, como a guerra na Europa, o fortalecimento da extrema direita pelo mundo, o aquecimento global e uma nova guerra fria entre as duas maiores economias do planeta, o senhor ainda é um otimista?
Sim, é claro. Basta pensar no progresso que fizemos se compararmos o mundo de hoje com o mundo do início dos anos 70, quando criei o Fórum Econômico Mundial. A cooperação global já tirou centenas de milhões de pessoas da pobreza.
Mesmo no Brasil, se você olhar para o PIB, se olhar para o poder de compra por pessoa, houve progresso. Nos anos 70, eu me lembro, um principal desafio era a taxa de alfabetização. Hoje, ninguém mais fala sobre isso. A paridade de gênero não fez o progresso que gostaríamos, mas, mesmo assim, estamos em uma situação melhor.
A expectativa de vida, desde que criei o FEM, em nível global aumentou de 10 a 15 anos. Em muitos, muitos aspectos, a vida melhorou. Mesmo que a cooperação global esteja em uma fase difícil neste momento, sou otimista em relação ao futuro. Basta que os países cooperem para passar pela transformação energética e alcançar a descarbonização da nossa economia global.
E, se olharmos para a inteligência artificial, o que nos torna diferentes? Acho que é a nossa crença na criatividade humana. Devemos acreditar nas criaturas humanas.
Fonte: O GLOBO
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