Embora cheguem ao Brasil com visto humanitário, afegãos dormem em barracas improvisadas no chão e em condições precárias que nada têm de humanitárias, criticam especialistas

O surto de sarna que atinge afegãos acampados à espera de abrigo no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, expõe uma crise humanitária que virou também emergência sanitária, afirmam médicos que atuam como voluntários com os grupos que há um ano vêm em grande número ao Brasil fugindo da retomada do Talibã no Afeganistão.

— Era uma tragédia anunciada, que hora ou outra ia acontecer. O ambiente é propício para que surtos aconteçam. Dormem todos juntos em aglomeração, sem condições de higiene, e não porque o hábito é esse, mas porque é uma condição imposta — descreve a médica intensivista Aretusa Chediak Roquim, cofundadora da ONG Além-fronteiras (Rebuilding lives) com o afegão Moosa Hashimi, e que atende afegãos recém-chegados ao país.

Com o apoio de hotéis parceiros, voluntários conseguem levar de 20 a 30 afegãos para tomar banho por dia, número insuficiente levando em conta que o grupo de afegãos acampados no saguão do aeroporto chega a cerca de 150 pessoas.

— Eles não conseguem tomar banho e ficam ali à espera de serem transferidos, acolhidos de alguma forma, ou acabam indo embora do Brasil para enfrentar a travessia para os Estados Unidos, Canadá ou Guiana Francesa (em uma rota que mira a Europa) — diz a médica intensivista.

O primeiro caso de escabiose, ou sarna, foi identificado na quinta-feira da semana passada, após a visita de uma médica voluntária ao local, que então informou as autoridades.

Desde então, mais de 20 afegãos, entre crianças e famílias inteiras, foram diagnosticadas com a doença, que é parasitária e contagiosa transmitida pelo contato entre pessoas ou através do uso de roupas contaminadas.

A prefeitura de Guarulhos afirma que a Secretaria de Saúde enviou agentes ao aeroporto e medicou os afegãos na semana passada. "Por medida profilática, para evitar que a doença se propagasse, 165 afegãos foram medicados desde o surgimento dos primeiros sintomas", afirmou a prefeitura em nota ao GLOBO.

Segundo Aretusa Chediak Roquim, a medicação oral oferecida é apenas uma ponta do tratamento:

— O tratamento se baseia em medidas de higiene urgentes, como trocar roupa de cama, roupa de uso pessoal, evitar aglomerações, e tratar não só a pessoa com sarna, mas o restante da família que também está ali com ela.

Visto humanitário

Nacionais afegãos, apátridas e pessoas afetadas pela instabilidade no país podem solicitar o visto humanitário, que permite a residência temporária no Brasil. A medida foi adotada pelo governo federal desde a retomada do Talibã no Afeganistão. Especialistas afirmam, porém, que ainda faltam políticas adequadas para os afegãos depois que eles chegam aqui.

— Os afegãos chegam ao Brasil com visto humanitário, mas sem nenhuma política realmente firmada para seu acolhimento. E eles passam a morar no aeroporto, sendo que esse deveria ser um local só de passagem — ressalta a médica intensivista. — Faltam políticas desenhadas para essas pessoas, que vivem em condições precárias que nada têm de humanitárias. Elas dormem no chão, em barracas improvisadas.

Aretusa Roquim diz que os afegãos esperam em média mais de 20 dias por um abrigo. Durante esse período, afirma, muitas vezes usam o mesmo lençol, o mesmo cobertor e a mesma roupa.

— Os abrigos estão lotados. E não conseguimos rotatividade grande, ainda mais nessa época de frio. As pessoas acabam abandonadas no aeroporto — relata.

ONGs acusam as autoridades de fazer um "jogo de empurra" de responsabilidades.

— Estamos pressionando as autoridades para autorizar o banho e o acesso a serviços de higiene pessoal. Mas cada órgão passa a responsabilidade adiante, brincando de "batata quente" com a vida das pessoas — critica Miguel Freire Couy, coordenador do Coletivo Frente Afegã.

De acordo com a prefeitura, Guarulhos possui atualmente 177 vagas para acolhimento de migrante e refugiados, "sendo 127 geridas pela municipalidade e outras 50 pelo governo estadual". No momento, afirma, todas estão lotadas.

A GRU Airport, concessionária do Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo, informou que a atuação direta no acolhimento de famílias afegãs que chegam ao Brasil é responsabilidade da prefeitura de Guarulhos e demais autoridades públicas competentes.

Em nota, a concessionária afirma que "tem contribuído no suporte à realização de procedimentos de higiene pessoal e manutenção de limpeza constante do espaço". A higienização dos banheiros daquela área, acrescenta, também foi intensificada.

"O vestiário, por se tratar de uma área operacional destinada a funcionários, é viabilizado dentro das condições e disponibilidade do aeroporto, de acordo com um planejamento alinhado com a Prefeitura de Guarulhos", conclui o texto.


Fonte: O GLOBO