Órgão está presente em apenas 29% das seções e subseções da Justiça Federal do país; Piauí é o caso mais grave, com defensores apenas na capital
Há um ano, o autônomo Ricardo Almeida precisou pegar um ônibus em sua cidade, Bom Jesus (PI), e viajar por 16 horas até Teresina, a 768 quilômetros. Sem dinheiro para advogado particular, ele buscou ajuda na Defensoria Pública da União (DPU) com a esperança de que uma ação obrigasse a transferência de seu tio, vítima de um caso grave de formação expansiva da laringe, para o Hospital Universitário da Universidade Federal do Piauí, onde conseguiria ser tratado.
Situações como essa se repetem por todo o país devido à baixa capilaridade da Defensoria Pública, que deveria estar, até o final do ano passado, presente em todas as seções e subseções judiciárias brasileiras, como obrigava a Emenda Constitucional 80, de 2014. Segundo o órgão, a falta de orçamento dos últimos anos impediu a expansão, e agora novas fontes de recursos são tentadas no Congresso.
Tio de Ricardo, Valdecir Almeida de Oliveira conseguiu trocar o leito do Hospital Manoel de Sousa Santos, em Bom Jesus, pelo tratamento no hospital universitário mais de um mês após a internação, por uma ação da DPU. Mas morreu depois de dois meses.
— Se tivesse uma DPU mais próxima, a gente poderia ter ido até antes, e quem sabe ele teria mais chances de sobreviver — disse o sobrinho, que lembrou que ao menos ele teve um tratamento digno nos seus últimos momentos. — Falei para muita gente lá de Bom Jesus que estava precisando de atendimento e não estava conseguindo, com casos graves inclusive, para procurarem a DPU. Mas poucos conseguem. A viagem de ônibus pode levar de 15 a 17 horas. Ainda tem a questão da passagem e da hospedagem. Muita gente fica sem atendimento porque não tem condição.
Verba congelada
Atualmente, a DPU só consegue estar em 29% das seções e subseções da Justiça Federal (80 de 279). O Piauí é o caso mais grave: há apenas uma seção coberta, a de Teresina. As outras cinco no estado não têm defensores federais. No caso de Bom Jesus, a seção mais próxima fica em Corrente, a três horas de distância, uma viagem que seria mais viável do que a Teresina.
Segundo a DPU, os problemas são reflexos da falta de recursos. Desde 2016, a verba está congelada. Com o projeto do novo arcabouço fiscal, o órgão tentou junto ao governo federal e aos parlamentares retirar as limitações do orçamento, que hoje só pode crescer pela correção da inflação.
O texto que tramita no Senado, porém, manteve a DPU com as restrições de antes. Outra tentativa é um projeto de lei, também no Senado, que destina 15% do Fundo Defesa de Direitos Difusos para a defensoria. Esse texto deve ser votado na semana que vem.
Nos dois anos entre a emenda de 2014 e a instituição do teto de gastos, a DPU conseguiu criar 20 novas unidades em cidades do interior. Mas a expansão foi interrompida.
— A limitação do orçamento torna mais frágil o nosso serviço, o que é um descaso com a população mais pobre. O público-alvo da defensoria soma 40 milhões de pessoas (com renda de até dois salários mínimos) — diz o defensor público-geral federal em exercício, Fernando Mauro. — Somos o primo pobre do sistema de Justiça.
Para atingir todas as seções e subseções federais, a DPU calcula que seria necessário um acréscimo de R$ 2,2 bilhões no orçamento anual, hoje de R$ 700 milhões. O orçamento proposto para todo o Judiciário este ano é de R$ 59,70 bilhões. Desse total, R$ 8,9 bilhões vão para o Ministério Público da União.
A a escassez de verba também impacta a logística de transporte para lugares sem representações da defensoria. Alguns escritórios não têm um carro sequer. A penúria tem levado defensores a pedir carona aos colegas do Ministério Público Federal para atuar em resgates de trabalhadores mantidos em condições análogas à escravidão, crime frequente em regiões distantes dos centros urbanos.
— A DPU tem que ir a essas operações porque são elas que viabilizam as ações trabalhistas, inclusive em acordos de indenização. Outra dificuldade é ir a penitenciárias sem carro. Muitos motoristas de aplicativo não aceitam corridas para esses locais — observa Mauro.
Sem condições para alcançar toda a população necessitada, a DPU recebeu, somente nos últimos três anos, 17,4 mil cartas de presos pedindo assistência jurídica. Em um dos casos atendidos no ano passado, após a chegada de uma carta, um preso que estava condenado por roubo com arma de fogo, baseado em um reconhecimento fotográfico, foi solto após um defensor conseguir um habeas corpus. Logo depois, outra pessoa assumiu o crime.
Mutirões itinerantes
No atual cenário, mutirões itinerantes a cidades do interior acabam sendo a solução possível. Castanhal, no interior do Pará, é uma das cidades que possui uma subseção judiciária federal, mas não conta ainda com uma unidade da DPU. Foi somente após uma ação itinerante, no ano passado, que a costureira Ilma Tavares, de 67 anos, conheceu o trabalho da Defensoria Pública.
Nos dois anos entre a emenda de 2014 e a instituição do teto de gastos, a DPU conseguiu criar 20 novas unidades em cidades do interior. Mas a expansão foi interrompida.
— A limitação do orçamento torna mais frágil o nosso serviço, o que é um descaso com a população mais pobre. O público-alvo da defensoria soma 40 milhões de pessoas (com renda de até dois salários mínimos) — diz o defensor público-geral federal em exercício, Fernando Mauro. — Somos o primo pobre do sistema de Justiça.
Para atingir todas as seções e subseções federais, a DPU calcula que seria necessário um acréscimo de R$ 2,2 bilhões no orçamento anual, hoje de R$ 700 milhões. O orçamento proposto para todo o Judiciário este ano é de R$ 59,70 bilhões. Desse total, R$ 8,9 bilhões vão para o Ministério Público da União.
A a escassez de verba também impacta a logística de transporte para lugares sem representações da defensoria. Alguns escritórios não têm um carro sequer. A penúria tem levado defensores a pedir carona aos colegas do Ministério Público Federal para atuar em resgates de trabalhadores mantidos em condições análogas à escravidão, crime frequente em regiões distantes dos centros urbanos.
— A DPU tem que ir a essas operações porque são elas que viabilizam as ações trabalhistas, inclusive em acordos de indenização. Outra dificuldade é ir a penitenciárias sem carro. Muitos motoristas de aplicativo não aceitam corridas para esses locais — observa Mauro.
Sem condições para alcançar toda a população necessitada, a DPU recebeu, somente nos últimos três anos, 17,4 mil cartas de presos pedindo assistência jurídica. Em um dos casos atendidos no ano passado, após a chegada de uma carta, um preso que estava condenado por roubo com arma de fogo, baseado em um reconhecimento fotográfico, foi solto após um defensor conseguir um habeas corpus. Logo depois, outra pessoa assumiu o crime.
Mutirões itinerantes
No atual cenário, mutirões itinerantes a cidades do interior acabam sendo a solução possível. Castanhal, no interior do Pará, é uma das cidades que possui uma subseção judiciária federal, mas não conta ainda com uma unidade da DPU. Foi somente após uma ação itinerante, no ano passado, que a costureira Ilma Tavares, de 67 anos, conheceu o trabalho da Defensoria Pública.
Desde 2018, ela aguardava um retorno do INSS sobre um pedido de auxílio-doença. Sofrendo de osteoporose, com sequelas no punho e na perna direita, não consegue mais costurar, e parou de ter renda. O INSS negou o benefício, mas, após o mutirão, a DPU entrou com ação judicial, que segue em trâmite. Enquanto isso, a defensora do caso conseguiu que Ilma passasse a receber R$ 1,3 mil mensais pelo Benefício Assistencial ao Idoso, que ela nem sabia que poderia reivindicar.
— Não conhecia, nem nunca tinha ouvido falar da Defensoria Pública. Sou descendente de indígena, de uma família muito humilde, do interior do Acre. Conheci direitos que eu nem sabia antes que existiam. A justiça itinerante me abriu portas e abriu minha mente — conta a costureira que, além do benefício, vem contando com apoio da família.
Além de ações individuais, a DPU é importante para ações coletivas em comunidades carentes. Os serviços da defensoria vêm sendo fundamentais na luta do Quilombo Lagoas contra um projeto da SRN Mineração no Piauí. Em 2019, a empresa pediu uma licença para operar em uma área que fica dentro do território quilombola, onde moram cerca de 11 mil pessoas.
— Não conhecia, nem nunca tinha ouvido falar da Defensoria Pública. Sou descendente de indígena, de uma família muito humilde, do interior do Acre. Conheci direitos que eu nem sabia antes que existiam. A justiça itinerante me abriu portas e abriu minha mente — conta a costureira que, além do benefício, vem contando com apoio da família.
Além de ações individuais, a DPU é importante para ações coletivas em comunidades carentes. Os serviços da defensoria vêm sendo fundamentais na luta do Quilombo Lagoas contra um projeto da SRN Mineração no Piauí. Em 2019, a empresa pediu uma licença para operar em uma área que fica dentro do território quilombola, onde moram cerca de 11 mil pessoas.
O território já passou por estudos do Incra, mas ainda aguarda a homologação do título. Os moradores se preocupam com a mineração por causa de possíveis impactos às suas atividades, em especial de agricultura, a criação de bodes e a apicultura. Por ano, o quilombo produz 600 toneladas de mel, exportadas para a Europa.
— Tem casa a apenas um quilômetro do foco da mineração — explica Claudio Calango, vice-presidente da Associação Territorial do Quilombo Lagoas, que lamenta a ausência de escritório da DPU na cidade.
A DPU e o MPF recorrem de uma decisão contrária a uma ação que tenta anular o licenciamento ambiental da mineradora. Os dois órgãos também haviam pedido que o processo fosse analisado por uma instância federal, e não pelo órgão ambiental do Piauí.
Em entrevista à TV Globo, Marcelo Prado, presidente da SRN, disse que a comunidade desconhece as atividades da empresa, negou qualquer risco e a possibilidade de remoção de casas do quilombo. Consultado sobre o orçamento da DPU no arcabouço fiscal, o Ministério do Planejamento disse que não iria comentar.
Fonte: O GLOBO
— Tem casa a apenas um quilômetro do foco da mineração — explica Claudio Calango, vice-presidente da Associação Territorial do Quilombo Lagoas, que lamenta a ausência de escritório da DPU na cidade.
A DPU e o MPF recorrem de uma decisão contrária a uma ação que tenta anular o licenciamento ambiental da mineradora. Os dois órgãos também haviam pedido que o processo fosse analisado por uma instância federal, e não pelo órgão ambiental do Piauí.
Em entrevista à TV Globo, Marcelo Prado, presidente da SRN, disse que a comunidade desconhece as atividades da empresa, negou qualquer risco e a possibilidade de remoção de casas do quilombo. Consultado sobre o orçamento da DPU no arcabouço fiscal, o Ministério do Planejamento disse que não iria comentar.
Fonte: O GLOBO
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