Principal organização de defesa dos direitos humanos de El Salvador diz que 153 presos morreram sob custódia do Estado e aponta indícios de torturas nas carceragens do país

Um relatório divulgado pela principal organização de defesa dos direitos humanos de El Salvador, na segunda-feira, traz testemunhos de atrocidades cometidas em presídios salvadorenhos durante o regime de exceção imposto, há mais de um ano, pelo governo de Nayib Bukele. Segundo a ONG Cristosal, pelos menos 153 presos morreram sob custódia do Estado desde que a medida entrou em vigor, e há indícios da prática de tortura nas carceragens.

Desde que entrou em vigor o regime de exceção, a organização ouviu centenas de pessoas que estiveram nas prisões do país e que terminaram inocentadas e liberadas, além de parentes de presos mortos sob custódia no mesmo período. 

A Cristosal também comparou os depoimentos com fotos e documentos policiais e de medicina forense. As autoridades do país declararam que as informações oficiais sobre o assunto são reservadas e se limitaram a afirmar que as mortes dos presos ocorreram por causas naturais.

— As enormes violações sistemáticas já são política de Estado. A suspensão de direitos e a militarização já não são uma exceção e sim a regra que incide na vida de todos os salvadorenhos — disse ao El País o diretor da Cristosal, Noah Bullock.

A investigação contabilizou um total de 153 mortes de presos sob custódia do Estado. Em um ano da medida em vigor, o relatório relacionou 29 casos de vítimas em que a causa do falecimento foi classificada como morte violenta e outros 46 em que foi determinada como “provável morte violenta” ou suspeita “de criminalidade”. 

Entre estes 75 casos, o relatório aponta que há um “padrão comum” de presença de lacerações, hematomas que evidenciam golpes, feridas com objetos perfurocortantes ou contundentes, ou de sinais de estrangulamento ou enforcamento nos corpos. A investigação revelou ainda que a morte por asfixia mecânica foi uma das causas “mais frequentes” reportadas nos documentos de medicina legal nesses casos.

Um exemplo descrito no relatório foi o de um homem de 30 anos devolvido à família já morto e com o relato de uma protuberância no pescoço. A perícia médica determinou que a causa da morte foi "asfixia mecânica por estrangulamento”. A asfixia mecânica ou por afogamento foi um dos métodos de tortura mais usados em El Salvador pelas forças de segurança durante a guerra civil no país, entre 1970 e 1992.

— Dá muita tristeza ver que o Estado volta a recorrer a prisões arbitrárias e torturas em nome da segurança nacional — diz Bullock.

O relatório revela outros casos de registros de legistas que apontam sinais de tortura ou por morte provocada por falta de acesso a remédio ou atendimento médico. O documento também alerta que o número de mortes pode ser muito maior por conta dos casos em que a causa da morte não foi determinada e dos relatos de presos que foram enterrados como indigentes, sem aviso prévio às famílias. Uma das principais reclamações de parentes de presos durante o regime de exceção é a falta de informações sobre os detidos.

Choques, golpes e solitária

A investigação também levantou relatos de horror dos ex-prisioneiros que ficaram encarcerados durante o regime de exceção e que terminaram inocentados pela justiça e liberados. Um jovem de 20 anos, por exemplo, detido na prisão de Mariona relatou que um guarda prisional fazia ameaças de morte constantemente. “Só saem com vida daqui se tiverem sorte”, dizia o agente aos presos, segundo o depoimento.

O relatório cita também exemplos de presos submetidos a descargas elétricas e golpes. Outro relato de um preso no mesmo presídio descreve humilhações a que os detentos eram submetidos. Segundo o testemunho, depois de perguntar se os presos tinham fome, um guarda atirou a comida no chão sujo e mandou os detentos comerem ali mesmo. “Com fome, e depois do que nos disse, tivemos de comer ali mesmo, só com a boca. Depois saiu. Quando voltou, o guarda disse: tinham fome os cães”, diz o relato descrito no documento.

Outro tipo de tortura que o relatório descreve é o isolamento em solitárias. Segundo a investigação, as celas de isolamento “são usadas para os que reclamam, falam durante a noite ou quando não se submetem às ordens dos guardas e, às vezes, sem motivo nenhum”, diz o documento. Segundo o relatório, são celas menores, em geral escuras, sem leito e, às vezes, sem banheiro ou mesmo uma fossa sanitária, onde os presos não têm permissão para tomar banho, recebem pouca água potável, e de onde vários detidos relatam que alguns saem desnutridos ou até sem vida.

Estado de exceção

O governo de Bukele decretou estado de exceção em 27 de março do ano passado alegando ser uma resposta à violência das gangues. A medida foi adotada depois de um massacre com 87 mortes provocado pelas duas maiores gangues do país (a Mara Salvatrucha-13 e o Barrio 18), em apenas um fim de semana.

De acordo com investigações da imprensa local, o massacre ocorreu por causa da ruptura de um pacto que Bukele mantinha com as gangues desde que assumiu o governo. O regime de exceção salvadorenho é alvo de críticas de organismos de defesa de direitos humanos nacionais e internacionais, não apenas porque a medida se prolongou mais do que a lei permite, mas também porque dá margem a violações sistemáticas de direitos dos cidadãos.

Em resposta às críticas, o presidente salvadorenho vem desqualificando os defensores de direitos humanos os chamando “defensores de integrantes das gangues”. Dos quase 67 mil presos até agora, pelo menos 5 mil já foram considerados inocentes e liberados pelas autoridades.

Para defensores de direitos humanos, a medida levou El Salvador de volta ao passado.

— Na história salvadorenha, os regimes de exceção não são novidade. São os instrumentos preferidos de controle social e repressão política das ditaduras militares do passado. O cenário de hoje é preocupante e lamentavelmente conhecido das épocas mais obscuras da história salvadorenha — analisa Bullock.


Fonte: O GLOBO