Previsão de crescimento de gastos carimbados acima dos limites gerais do arcabouço preocupa especialistas em contas públicas e até técnicos do governo, que planeja reavaliação de políticas públicas

Além do desafio de aumentar a arrecadação para viabilizar o arcabouço fiscal, que a Câmara dos Deputados promete ratificar nesta semana, o governo terá dificuldades para acomodar o crescimento de uma série de despesas obrigatórias logo nos primeiros anos de vigência da nova regra.

O marco fiscal proposto para substituir o teto de gastos permite que o Orçamento anual do governo cresça, em relação ao ano anterior, o equivalente a 70% do aumento das receitas, entre 0,6% e 2,5% acima da inflação.

No entanto, uma parcela significativa das despesas deverá subir acima desses índices, apontam especialistas e técnicos da própria equipe econômica, o que vai desafiar o equilíbrio das contas e forçar cortes em outras áreas.

Gastos com saúde, educação e emendas parlamentares, por exemplo, terão um piso baseado no total da arrecadação de impostos. O compromisso do governo Lula com o aumento real do salário mínimo também tende a descolar a expansão dos gastos com Previdência do arcabouço.

Essas rubricas deverão pressionar outros itens do Orçamento, que terá margem ainda mais apertada para cortes com a introdução de um piso de desembolsos mínimos para investimentos. O governo já indica que essa situação exigirá a revisão de políticas públicas para acomodar prioridades sem inviabilizar a regra fiscal.

Crescimento real

Diferentemente do teto de gastos, que limitava o aumento de despesas orçamentárias à inflação do ano anterior, o novo arcabouço fiscal foi desenhado para permitir que o gasto total do governo tenha sempre algum crescimento real, ou seja, acima do IPCA, limitado a uma fração do aumento da arrecadação.

Para evitar o estrangulamento dos investimentos provocado pelo teto de gastos, também foi estabelecido um patamar mínimo, de 0,6% do PIB, de aportes em projetos como obras de infraestrutura.

Os gastos com saúde, educação e emendas, atrelados a um percentual da receita, e os benefícios da Previdência, seguro-desemprego e abono salarial, ligados ao salário mínimo, tornarão mais difícil cumprir os limites gerais do arcabouço fiscal.

Alerta de técnicos

Essa perspectiva preocupa as equipes dos ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e do Planejamento, Simone Tebet. Nota técnica da Secretaria de Orçamento Federal (SOF), do Planejamento, emitida quando o arcabouço foi proposto, alertou que o piso de investimentos deixará o Orçamento mais engessado, apesar do mérito da proposta.

“Para além da participação significava das despesas obrigatórias no total do gasto público, também há necessidade de cumprimento dos mínimos da saúde e da educação e de cobertura das despesas com custeio administrativo, sendo o piso para investimentos uma nova restrição alocativa para o governo. Nesse sentido, cabe reforçar a necessidade de se avançar continuamente na agenda de revisão de gastos e reformas estruturantes, de forma a conferir não só a desejada perenidade do arcabouço fiscal ora proposto, mas também o cumprimento do referido piso para o investimento, sem prejuízo da trajetória almejada para a dívida pública”, diz o texto, obtido pelo GLOBO por meio da Lei de Acesso à Informação.

Neste ano, os gastos federais com saúde somam R$ 180 bilhões. Com educação, R$ 145 bilhões. Os investimentos são cerca de R$ 70 bilhões, patamar que deve se manter no próximo ano. Apenas a saúde terá um gasto extra, acima da inflação, de cerca de R$ 30 bilhões em 2024 por conta do piso.

Sob o teto de gastos, as despesas com saúde e educação estavam travadas ao patamar de 2016, corrigidas apenas pela inflação. Os investimentos eram o alvo preferencial dos cortes para cumprir o teto.

Para especialistas, mesmo com a adoção do novo arcabouço fiscal, o governo não terá como fugir de futuros cortes de gastos para acomodar as rubricas obrigatórias sem cair na reiterada busca de exceções — como foi feito no governo passado em relação ao teto.

‘Como conciliar tudo?’

Livio Ribeiro, pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre) e sócio da gestora BRCG, estima que o arcabouço deixa um espaço pequeno, em torno de 5% do total dos gastos, para cortes.

— O arcabouço fiscal é uma regra de aumento de despesa, que pode ser maior ou menor. Mas há coisas que crescem acima dessa regra. Como conciliar tudo? Essa é a grande dúvida que não foi esclarecida — avalia. — A briga vai ser quais as rubricas serão punidas e quais serão exceções para viabilizar todas as demandas que a sociedade e o Congresso vão colocar no Orçamento.

Gabriel Leal de Barros, sócio da Ryo Asset e especialista em contas públicas, acredita que o crescimento contratado das principais rubricas vai acabar dominando o avanço das despesas. E isso ficará mais difícil diante da ausência, até agora, de planos de racionalização de gastos no atual governo.

— O arcabouço contrata expansão relevante do gasto e reduz o espaço fiscal dentro do novo teto — avalia o economista. — A expansão contratada nos principais gastos obrigatórios e o piso dos investimentos reduzem o espaço discricionário da regra.

Barros defende a retomada de uma agenda de revisão de gastos ineficientes:

— Fusão de políticas sociais, reforma administrativa e governo digital entregam, em várias gradações e níveis de ambição, ganhos em economia e eficiência do gasto público.

Avaliação de políticas

A ministra Simone Tebet já disse ter planos de avaliação e revisão de gastos em políticas públicas, mas ainda não os detalhou. Em entrevista ao GLOBO, o secretário de Orçamento Federal, Paulo Bijos, concorda que a conciliação de diferentes gastos prioritários no Orçamento será um desafio:

— É um cenário desafiador, porém crível.

Ele explica que o plano da pasta é implementar um Orçamento de médio prazo em paralelo a análises e revisões de gastos. A ideia é indicar o custo de cada política num horizonte de quatro anos ou mais, de forma a analisar a efetividade e indicar eventuais ajustes. Hoje, o Orçamento indica o custo de programas só para um ano.

— Se houver dificuldade, que ela seja antevista e já possibilite a adoção de medidas de correção antecipada — diz. — Vai haver uma mudança, até cultural, que todo o conjunto de despesas, obrigatórias ou não, serão objeto de revisão do gasto. Essa é uma mudança de paradigma importante.

Corte de R$ 40 bi em 2024

O secretário defende, também, a necessidade de a Câmara aprovar a mudança feita pelo Senado no texto do arcabouço, sobre o cálculo da inflação que determinará o aumento dos gastos no próximo ano. Essa alteração permitirá ao governo evitar um corte da ordem de R$ 40 bilhões na proposta orçamentária de 2024, o que preocupa Tebet. Mesmo que esse gastos possam ser corrigido no início do ano, ela quer evitar propor um Orçamento com cortes.

— Nosso objetivo é permitir que o ponto de partida do arcabouço fiscal já esteja redondo o suficiente para o modelo rodar com consistência. Essa é a razão pela qual é tão importante que a Câmara preserve essa possibilidade de a proposta orçamentária ter essa parcela de despesa discricionária (não obrigatória). A ideia toda é permitir que a gente elabore uma proposta com realismo orçamentário — disse Bijos.


Fonte: GLOBO