Indígenas bilíngues participaram da tradução; texto será lançado esta semana pela ministra Rosa Weber no STF

Nascido às margens do Rio Içana, na fronteira entre Brasil, Colômbia e Venezuela, Edilson Martins foi alfabetizado no idioma baníwa, falado por indígenas da região. Aos 10 anos, se mudou com a família para outra aldeia, também na cidade de São Miguel da Cachoeira, e teve contato pela primeira vez com o nheengatu, considerada a língua geral amazônica, criada a partir do tupi antigo e utilizada por mais de 25 mil pessoas de diferentes etnias até hoje.

Martins cursou Letras na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), concluiu mestrado em Linguística na Universidade de Brasília (UNB) e passou a difundir conhecimento a comunidades ao seu redor.

Há três meses, foi um dos convidados a traduzir pela primeira vez a Constituição para o idioma nheengatu. O texto será lançado na quarta-feira pela ministra Rosa Weber, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

— Num passado recente, sofríamos preconceito ao sairmos do interior das aldeias por não falarmos português. Essa iniciativa vem ao encontro do anseio de valorização dos povos indígenas. Além disso, vem concretizar os direitos que o próprio texto constitucional, principalmente nos artigos 231 e 232, garante, que são o reconhecimento aos índios dos seus costumes, línguas, crenças, tradições e terras que ocupam — disse Martins.

O professor integrou um grupo de 15 tradutores e consultores, formados por indígenas bilíngues, além de advogados e representantes do Tribunal de Justiça do Amazonas, mobilizados pelo CNJ e STF. Diariamente, por pelo menos três horas e ao longo de três meses, eles se dedicaram a interpretar, compreender e buscar sinônimos das expressões jurídicas da Carta Magna brasileira. Rosa Weber se empenhou institucionalmente pela realização do projeto.

— A nossa Constituição Cidadã de 1988 expressa os anseios da sociedade brasileira, formada ao longo dos séculos por grupos sociais das mais variadas origens étnicas, que lograram resistir à colonialidade e à escravidão. Ao traduzir a nossa Lei Maior ao idioma nheengatu, preservado por comunidades distribuídas na Região Amazônica, buscamos efetivar a igualdade, assegurando o acesso à informação e à justiça e permitindo que os povos indígenas conheçam os direitos, os deveres e os fundamentos éticos e políticos que dão sustentação ao nosso Estado Democrático de Direito — disse a magistrada.

O nheengatu começou a se formar pelo contato entre indígenas de diferentes etnias no período colonial, e sofreu influência dos portugueses, sobretudo dos missionários religiosos que buscaram gramatizá-la e padronizá-la.

Segundo dados do Censo do IBGE em 2010, o Brasil tinha à época 274 línguas indígenas para uma população de 817.963 mil originários de 305 etnias. Esses números serão atualizados em agosto, com o Censo de 2023. Mas mostram que o projeto é o primeiro passo dessa integração. Por isso, diz a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, a iniciativa será reproduzida para outras línguas:

— Estamos na Década das Línguas Indígenas e empenhados em fortalecer esta discussão para a valorização desses idiomas no Brasil, evitando a extinção de alguns, ameaçados devido a ter poucos falantes. Vamos reproduzir para outras línguas e mais povos.

Plantão 24 horas

O presidente do Biblioteca Nacional e curador do projeto, Marco Lucchesi, disse que o trabalho de tradução foi intenso ao longo dos meses, com plantão de 24 horas por profissionais de Direito para tirar dúvidas.

— A tradução exige o domínio de ambos os idiomas e, nesse caso específico, de um elemento cultural muito importante que aproxima ao mesmo tempo que distancia realidade e língua. Precisávamos de falantes de língua materna, que encontramos na Academia de Nheengatu, e tínhamos um conteúdo com elementos abstratos e técnico-jurídicos, cujas dúvidas iam sendo sanadas em um plantão de 24 horas pelos profissionais do Direito — explicou.

Presidente da Academia de Nheengatu, Edison Cordeiro Gomes pertence ao povo Baré, que vive no curso do Rio Negro, e conta que o nheengatu se fez ainda mais presente na região diante do isolamento social provocado pela pandemia de Covid-19. Na ocasião, ele passou a publicar vídeos nas redes sociais sobre os cuidados necessários para evitar a disseminação do vírus. Rapidamente, o conteúdo com o idioma foi compartilhado pelos vizinhos em perfis no Instagram e Facebook.

— Nosso maior desafio foi não criarmos palavras novas, mas darmos sentido às que já existem. Como muitas das expressões em português não existem no nosso idioma, precisávamos pensar em como explicar esses termos aos falantes. Nunca havíamos nos deparado com portarias, decretos e artigos — disse.

Reuniões virtuais

A juíza Andrea Medeiros, do Tribunal de Justiça do Amazonas e uma das coordenadoras-executivas do projeto, conta que palavras corriqueiras no universo jurídico viraram enorme desafio para a tradução. Entre elas, pensão alimentícia, imposto e precatório. Um grupo de WhatsApp foi criado para discutir o processo, e reuniões virtuais uniam a equipe espalhada por cinco cidades da imensidão amazônica.

— Além das reuniões semanais virtuais, criamos um grupo no WhatsApp em que ficávamos à disposição para discutirmos termos técnicos que não são do dia a dia dos indígenas, como pensão alimentícia, imposto, precatório — disse Medeiros.

Para a advogada e militante dos Direitos Humanos Inory Kanamari, consultora do projeto, a tradução da Constituição Federal para uma das línguas indígenas acabará por aproximar o Poder Judiciário dos povos originários, dando a eles o real pertencimento como integrantes do país.

— Apesar da cultura da oralidade, o registro escrito nas línguas indígenas contribui para um melhor entendimento do contexto socioeconômico e cultural, pois ao conhecer o sistema jurídico da sociedade não indígena, os povos indígenas têm uma importante ferramenta para acessar a justiça, as políticas públicas e reivindicar os direitos já garantidos na Constituição, mas que historicamente ainda não foram plenamente efetivados — completa Luanna Marley, advogada, integrante da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (Renap) e também consultora do projeto.


Fonte: O GLOBO