Ao menos 66 pessoas foram presas durante 'dia da disrupção e resistência' contra projeto de Netanyahu, visto por críticos como uma ameaça ao Estado de Direito

Dianta da maior agitação social de sua História, Israel voltou a registrar protestos maciços nesta terça-feira, batizada de "dia de disrupção e resistência", após a coalizão encabeçada pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu retomar sua contestada reforma judicial depois de um hiato de três meses. 

Só no aeroporto de Tel Aviv há cerca de 10 mil manifestantes contrários ao projeto, visto por críticos como ameaçador para a democracia, mas que durante a madrugada (noite de terça no Brasil) passou pelo primeiro dos três votos necessários para se transformar em lei.

Segundo as autoridades, 66 pessoas foram presas pelo país, metade delas em Tel Aviv e outras 10 em Jerusalém. A polícia usou canhões d'água para liberar uma rodovia que liga as duas cidades, um dia após manifestantes tentarem se colar no chão da entrada da Knesset, o Parlamento israelense, antes de serem arrastados por policiais. Em Haifa, os manifestantes bloquearam uma grande faixa com a frase "nós seremos vitoriosos".

Há manifestações marcada para as próximas horas nos arredores da residência presidencial, do Ministério da Defesa e da embaixada americana em Tel Aviv, onde a cavalaria está nas ruas. Os protestos no aeroporto, o maior da cidade, começaram durante a tarde com bandeiras israelenses, gritos de guerra, entoações do hino nacional e enfrentamentos com a polícia. O local transformou-se em um palco comum de manifestações desde que a reforma foi anunciada em janeiro.

As forças de segurança tentaram evitar os protestos no Terminal 3, dando autorização para que o ato ocorresse apenas no Terminal 1, menor e limitado a voos domésticos e a linhas aéreas baratas europeias. Os manifestantes questionaram a ordem, afirmando que a "polícia não tem autoridade para limitar o acesso ao Terminal 3, designado apenas para passageiros e onde o público tem o direito de entrar". O procurador-geral do país, Gali Baharav-Miara, negou um aval para que a entrada no recinto fosse limitada para quem tiver bilhetes aéreos.

Cerca de 300 reservistas que atuam voluntariamente como ciberanalistas para as Forças de Defesa de Israel também anunciaram que não irão mais comparecer ao trabalho, recusando-se a continuar a "desenvolver habilidades cibernéticas para um regime criminoso, e não treinaremos a geração futura da ofensiva cibernética". Em um comunicado, afirmaram que as mudanças na lei "levarão à destruição das instituições do Estado, incluindo das agências de segurança".

A unidade cibernética das forças israelenses é particularmente estratégica para a segurança do país, e o movimento dentro dos reservistas, a espinha dorsal do Exército do país, é crescente. Os militares ameaçam punir soldados que se recusarem a seguir ordem, mas não está claro o que fará com reservistas que não fazem o trabalho voluntário. O Comando-Maior, contudo, afirmou que o grupo não tem o direito de se ausentar.

Dilema dos reservistas

Há meses, outras categorias de reservistas — espinha dorsal das atividades do Exército — ameaçam também não servir caço o projeto avance. Em abril, um grupo chegou inclusive a se recusar a treinar, condicionando o retorno à retirada do debate de pauta.

Os pilotos reservistas são particularmente importantes para missões, por exemplo: após 10 anos iniciais de serviço, comparecem a atividades de treinamento e operações, geralmente semanais, por uma média de mais duas décadas.

Em uma reunião de Gabinete no fim de semana, o ministro da Defesa, Yoav Gallant, contudo, disse as Forças Armadas "não conseguiriam suportar" a ausência de um número não especificado de reservistas em cargos de relevância. A quantia limite, contudo, seria de algumas centenas. As ameaças de não comparecimento, disse ele, são equivalentes a "brincar com fogo".

Estudantes da Universidade de Tel Aviv realizaram uma marcha ao redor do campus durante a manhã, e há atos previstos para a Suprema Corte e a Knesset. Outros centros universitários, firmas tecnológicas e bancos deram dias de folga para seus funcionários, endossando os atos contra a reforma.

O controverso projeto de lei foi aprovado em primeira votação por 64 a 56, com endosso de todos os membros da base governista e o rechaço unânime de opositores. O texto agora voltará à Comissão de Constituição, Lei e Justiça do Knesset, onde será preparado para sua segunda e terceira leituras, mas o governo pretende transformá-lo em lei antes que o Parlamento interrompa o recesso de verão no final deste mês.

'Padrão de razoabilidade'

A iniciativa trata da primeira parte do pacote da reforma judicial, proibindo completamente os tribunais de usar o "padrão de razoabilidade" para invalidar ou mesmo discutir decisões tomadas pelo governo e "outras autoridades eleitas, conforme estabelecido em lei". Isso impedirá que a Suprema Corte do país bloqueie decisões do governo que não considerem razoáveis, algo que Netanyahu, em julgamento por corrupção, e seus aliados afirmam ser necessário para conter a "politização" do Judiciário.

A disposição afeta, entre outras coisas, a nomeação de ministros — em janeiro, por exemplo, o tribunal ordenou que Aryeh Deri, condenado por fraude fiscal enquanto estava no poder, deixasse o governo, invalidando a nomeação de Netanyahu. Seu avanço em primeira leitura ocorre menos de duas semanas após o premier dizer que abandonaria a chamada cláusula de “anulação”, que permitiria ao Parlamento derrubar uma decisão da Suprema Corte por maioria simples.

Essa cláusula, duramente criticada, havia sido aprovada em primeira votação pelo Parlamento em março, mas, na ocasião, o governo decidiu pausar o processo para discutir a medida com a oposição. Na época, Netanyahu estava sob imensa pressão dos protestos cotidianos desde janeiro, semanas após sua volta ao poder depois de um interregno de 18 anos.

A gestão mais conservadora da História israelense reúne partidos de extrema direita e formações judaicas ultraortodoxas, que defendem os planos vistos pela oposição como uma rota que leva o país a uma deriva antiliberal e autoritária. Em março, contudo, foram forçados a pôr o pé no freio em meio à greve sem precedentes, jogando a decisão para este mês.

O catalisador para a suspensão há quatro meses foi a demissão de Gallant, que havia pedido uma suspensão do projeto diante das manifestações maciças, afirmando que a oposição das Forças Armadas à medida deixavam o país em posição vulnerável. Após o incidente, houve a convocação de uma greve geral, com enorme adesão.

Com o governo na corda-bamba, Netanyahu cedera temporariamente buscando "evitar uma guerra civil" e cultivar diálogo. A demissão de Gallant, por sua vez, nunca chegou a se concretizar. Os meses em que a tramitação esteve suspensa, contudo, nunca foram suficientes para acalmar os ânimos, com o shekel caindo quase 8% desde janeiro.


Fonte: O GLOBO