Integrante da elite do surfe e campeão cearense relembra envolvimento com crime e drogas, fala sobre a volta por cima através do esporte e instituto para ajudar crianças
Em 2006, eu era apenas mais um integrante do sistema penitenciário brasileiro. Trancado num presídio em Fortaleza, parecia sem futuro. Por ironia do destino, logo eu, criado nas ondas da Praia do Futuro, local conhecido na capital cearense.
De promessa no esporte a viciado e assaltante condenado, tudo havia acontecido muito rápido na minha vida. Mas eu queria mudar. E o ponto de virada foi quando Dona Graça, minha mãe, me perguntou se eu tinha vontade de voltar a surfar. Ela me levava jornais com notícias do esporte. Eu brincava fazendo “surfe imaginário” na parede da cela ou durante o banho de sol. Dava batidas, pegava “tubos”. Os outros presos achavam que eu estava louco.
“O Praiano (apelido que me deram) endoidou”. Um dia prometi que ela nunca mais ia me visitar num presídio ou numa delegacia. Nunca mais minha mãe passaria por aquilo. Ela começou a chorar, eu também, e ali foi a virada.
Mas preciso contar como fui parar no fundo do poço. Porque antes de me tornar o “Praiano”, eu fui o “Languete”. Um dos nomes mais temidos e conhecidos na favela onde moro até hoje em Fortaleza. E antes de ser o Languete, eu era um surfista cheio de sonhos.
Minha história no surfe começou quando meus pais se separaram. Fomos morar — eu, ela, irmão e irmã — na casa de uma tia. Meu primo, Israel, surfava e comecei a ir junto, aos 6 anos. Quando eu tinha uns 12, disputei meu primeiro campeonato, na Praia do Futuro, e fui campeão. Os olhos se voltaram para mim, muita gente viu que eu tinha talento.
Na mesma época, minha irmã conheceu um cara na favela onde moramos. Ele se tornou a figura paterna que eu buscava. Tinha um coração enorme, mas vinha de uma família desestruturada e era envolvido na criminalidade.
Mas preciso contar como fui parar no fundo do poço. Porque antes de me tornar o “Praiano”, eu fui o “Languete”. Um dos nomes mais temidos e conhecidos na favela onde moro até hoje em Fortaleza. E antes de ser o Languete, eu era um surfista cheio de sonhos.
Minha história no surfe começou quando meus pais se separaram. Fomos morar — eu, ela, irmão e irmã — na casa de uma tia. Meu primo, Israel, surfava e comecei a ir junto, aos 6 anos. Quando eu tinha uns 12, disputei meu primeiro campeonato, na Praia do Futuro, e fui campeão. Os olhos se voltaram para mim, muita gente viu que eu tinha talento.
Na mesma época, minha irmã conheceu um cara na favela onde moramos. Ele se tornou a figura paterna que eu buscava. Tinha um coração enorme, mas vinha de uma família desestruturada e era envolvido na criminalidade.
Chegava na minha casa com maconha. Eu, adolescente, comecei a me interessar por aquilo. Minha mãe não queria, mas saía de casa cedo e chegava à noite. Aos 13 anos experimentei cigarro e maconha. Foi amor ao primeiro trago.
Esse meu cunhado começou a traficar na comunidade, e roubava na praia. Passei a ir junto, pela adrenalina. Quando menos percebi, comecei a roubar dentro da escola. Comecei a ir armado para a escola e a assaltar na praia. Fui preso pela primeira vez aos 14 anos. Fiquei uma noite detido. Mas ao mesmo tempo eu ainda surfava. Chegava a fazer assaltos para ter dinheiro para ir competir.
Ser detido me gerou uma “fama” onde eu morava. Perdi minha identidade. Passei a ser conhecido como Languete (apelido derivado de “calango”) na favela. Depois da prisão, voltei a estudar. Fiquei seis meses prestando serviços numa escola de meninos especiais. Fui para uma audiência e acabei sentenciado a sete meses na Febem. Um lugar que não recupera ninguém. É uma formação do crime.
Nessa época estava começando o “mesclado”, que era maconha com crack. Aí estragou minha vida. Quando provei o crack, foi sinistro. Fiquei dependente. Cheguei no fundo do poço. Parei de estudar, não tinha mais sonhos, não surfava, não tinha perspectiva alguma de vida. Eu fazia três assaltos por dia. Passava três dias sem dormir.
Uma das coisas que foi minha salvação foi a namorada que conheci, que hoje é minha esposa, a Vânia. Ela lutou pela minha vida, me pegou no fundo do poço e não desistiu de mim. Minha mãe chegou a falar para ela: “meu filho é um bandido, não tem futuro. Deixe ele e vá seguir sua vida”.
Em 2005 fui preso em flagrante. Assalto a mão armada. Fiquei um ano e um mês no presídio, e aí começou a virada na minha vida, com a esperança do retorno ao surfe. Meu primo Israel estava com uma escolinha na favela. Para ser sincero, eu não queria muito a ajuda, porque sabia que ele ia me chamar para a igreja, e eu não queria.
Esse meu cunhado começou a traficar na comunidade, e roubava na praia. Passei a ir junto, pela adrenalina. Quando menos percebi, comecei a roubar dentro da escola. Comecei a ir armado para a escola e a assaltar na praia. Fui preso pela primeira vez aos 14 anos. Fiquei uma noite detido. Mas ao mesmo tempo eu ainda surfava. Chegava a fazer assaltos para ter dinheiro para ir competir.
Ser detido me gerou uma “fama” onde eu morava. Perdi minha identidade. Passei a ser conhecido como Languete (apelido derivado de “calango”) na favela. Depois da prisão, voltei a estudar. Fiquei seis meses prestando serviços numa escola de meninos especiais. Fui para uma audiência e acabei sentenciado a sete meses na Febem. Um lugar que não recupera ninguém. É uma formação do crime.
Nessa época estava começando o “mesclado”, que era maconha com crack. Aí estragou minha vida. Quando provei o crack, foi sinistro. Fiquei dependente. Cheguei no fundo do poço. Parei de estudar, não tinha mais sonhos, não surfava, não tinha perspectiva alguma de vida. Eu fazia três assaltos por dia. Passava três dias sem dormir.
Uma das coisas que foi minha salvação foi a namorada que conheci, que hoje é minha esposa, a Vânia. Ela lutou pela minha vida, me pegou no fundo do poço e não desistiu de mim. Minha mãe chegou a falar para ela: “meu filho é um bandido, não tem futuro. Deixe ele e vá seguir sua vida”.
Em 2005 fui preso em flagrante. Assalto a mão armada. Fiquei um ano e um mês no presídio, e aí começou a virada na minha vida, com a esperança do retorno ao surfe. Meu primo Israel estava com uma escolinha na favela. Para ser sincero, eu não queria muito a ajuda, porque sabia que ele ia me chamar para a igreja, e eu não queria.
Mas minha mãe insistiu e fui na casa dele, que me pediu seis meses para mudar minha vida. Me chamou para surfar, para eu mostrar para as crianças que poderia ser um exemplo. Ele me deu uma prancha e voltei a surfar. Além dele, outros amigos investiram em mim e sou muito grato: Roberto Filho, Fabinho, Bergson e Dida Lopes.
Um dia meu primo me chamou para acompanhar as orações que uma pessoa na favela fazia dentro de casa. Eu fui, e foi sinistro. Cantaram um hino e pareceu uma coisa sobrenatural para mim. Comecei a chorar, uma energia que eu nunca havia sentido. Eu queria ir para o céu dali mesmo.
Voltei a surfar e competir, mas não conseguia resultados bons. Não ganhava dinheiro e não tinha como sustentar minha família. Cheguei a pensar em roubar. Uma vez quase cometi um assalto. Uma voz veio dentro de mim e me impediu.
Eu já estava há uns dois anos nesse processo, surfando, competindo, tranquilo. Um dia, voltando de um campeonato em Santa Catarina, aconteceu uma tragédia. Meu irmão se envolveu num crime e foi morto.
Um dia meu primo me chamou para acompanhar as orações que uma pessoa na favela fazia dentro de casa. Eu fui, e foi sinistro. Cantaram um hino e pareceu uma coisa sobrenatural para mim. Comecei a chorar, uma energia que eu nunca havia sentido. Eu queria ir para o céu dali mesmo.
Voltei a surfar e competir, mas não conseguia resultados bons. Não ganhava dinheiro e não tinha como sustentar minha família. Cheguei a pensar em roubar. Uma vez quase cometi um assalto. Uma voz veio dentro de mim e me impediu.
Eu já estava há uns dois anos nesse processo, surfando, competindo, tranquilo. Um dia, voltando de um campeonato em Santa Catarina, aconteceu uma tragédia. Meu irmão se envolveu num crime e foi morto.
Todo mundo na favela esperava que eu fosse vingar a morte. Até mesmo os bandidos esperavam por isso. Havia um pacto entre nós, de vingança quando alguém fosse morto. Fui chamado, fizeram uma reunião e eu falei que ia quebrar aquele pacto. Eles me confrontaram e eu falei que ia exercer o perdão.
Em seguida foi meu cunhado, em uma disputa de tráfico. Três dias depois da morte, abracei os caras que o haviam matado. Eu não tinha outra opção. Eu queria perdoar e ser livre. Havia uma luta dentro de mim.
Em seguida foi meu cunhado, em uma disputa de tráfico. Três dias depois da morte, abracei os caras que o haviam matado. Eu não tinha outra opção. Eu queria perdoar e ser livre. Havia uma luta dentro de mim.
Vingança ou perdão? Depois que os abracei, fui para casa e comecei a chorar. Mas aquilo me trouxe uma liberdade e gerou autoridade. Mas vou contar para vocês que tive medo, sim, de ser morto. Aconteceu de eu entrar em um beco, os caras estarem lá e eu pensar “é agora”. Eles falaram que chegaram a pensar em me matar, mas não conseguiram. Viram mesmo que eu estava em outra.
De 2008 para 2009 os resultados começaram a aparecer. Voltei a estudar — passei para teologia na universidade — e ganhar campeonatos. Fui campeão cearense, brasileiro e depois pan-americano universitário. Foi um novo nascimento. Comecei a ter a vida. Não era mais um dependente de drogas. Fui vice-campeão brasileiro amador em 2010 e me profissionalizei.
De 2008 para 2009 os resultados começaram a aparecer. Voltei a estudar — passei para teologia na universidade — e ganhar campeonatos. Fui campeão cearense, brasileiro e depois pan-americano universitário. Foi um novo nascimento. Comecei a ter a vida. Não era mais um dependente de drogas. Fui vice-campeão brasileiro amador em 2010 e me profissionalizei.
Em 2021, fui campeão cearense profissional. No ano passado, consegui a vaga para disputar o Dream Tour, a elite do surfe nacional (nessa semana, o circuito tem sua segunda etapa, em Garopaba-SC). Nesse processo, cheguei a derrotar o campeão mundial Adriano de Souza em um campeonato.
Sei que tenho surfe, mas não tenho mais tanto essa chama de competidor. Olho para o surfe como uma questão social. Quero preparar um caminho. Tenho um instituto na favela onde moro, o Seed (“semente”, em inglês). Trabalho com crianças e adolescentes. Temos aulas de surfe, de inglês, cursos profissionalizantes, acompanhamento com os familiares e escola.
Sou também palestrante em casas de recuperação, presídios. Quero levar minha história como esperança para as pessoas. Espero que eu ajude um filho, um irmão, um marido. Se eu tiver mudado uma vida, terá valido a pena.
E você lembra da Dona Graça, que me abraçou chorando no presídio? Ela faz o rango da molecada no instituto e está realizada em ver o filho trabalhando assim. Hoje, ela chora de alegria.
* Em depoimento a Renato de Alexandrino
Fonte: O GLOBO
Sei que tenho surfe, mas não tenho mais tanto essa chama de competidor. Olho para o surfe como uma questão social. Quero preparar um caminho. Tenho um instituto na favela onde moro, o Seed (“semente”, em inglês). Trabalho com crianças e adolescentes. Temos aulas de surfe, de inglês, cursos profissionalizantes, acompanhamento com os familiares e escola.
Sou também palestrante em casas de recuperação, presídios. Quero levar minha história como esperança para as pessoas. Espero que eu ajude um filho, um irmão, um marido. Se eu tiver mudado uma vida, terá valido a pena.
E você lembra da Dona Graça, que me abraçou chorando no presídio? Ela faz o rango da molecada no instituto e está realizada em ver o filho trabalhando assim. Hoje, ela chora de alegria.
* Em depoimento a Renato de Alexandrino
Fonte: O GLOBO
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