Nelson Teich criticou sanção pelo presidente Lula e disse que o caso é um exemplo da dificuldade de conduzir o sistema de saúde ’de uma forma técnica e científica’
“A liberação de uso da ozonioterapia é na sua essência similar à liberação da cloroquina para Covid-19. Na minha opinião, essa liberação da ozonioterapia foi um erro. Os momentos são distintos. Agora não temos o caos, o medo, a pressão, a politização e polarização do período agudo da Covid-19, por isso as duas discussões podem parecer diferentes, mas não são. Esse fato mostra como é difícil o sistema de saúde ser conduzido de uma forma técnica e científica”, escreveu o médico, que esteve à frente da pasta em 2020.
Ex-ministro da Saúde critica liberação da ozonioterapia. — Foto: Reprodução X (antigo Twitter)
Teich deixou o ministério em maio de 2020, menos de um mês após ter assumido para substituir Luiz Henrique Mandetta. O motivo foi justamente as divergências em relação às medidas de combate ao novo coronavírus. Na época, Bolsonaro queria alterar o protocolo no Sistema Único de Saúde (SUS) para permitir o uso da cloroquina, medicamento comprovadamente ineficaz para Covid-19.
Além disso, o então presidente havia incluído salões de beleza, barbearias e academias como atividades sociais durante o período de isolamento, para que pudessem funcionar no momento em que o vírus avançava pelo país e grande parte da população estava em isolamento. Ambas as medidas contribuíram para que Teich pedisse demissão.
A nova lei sobre ozonioterapia, criticada pelo ex-ministro, permite que todos os profissionais de saúde do país realizem a ozonioterapia, prática que também desperta debates acerca da sua comprovação científica. A técnica envolve o uso do gás ozônio, que tem um potencial oxidante e bactericida, misturado com o oxigênio. Juntos são aplicados de diversas maneiras no paciente, como pela aplicação direta com uma seringa, ou por via retal.
Em tese, essa aplicação melhoraria a oxigenação dos tecidos e levaria a um fortalecimento do sistema imunológico. No entanto, ambas as alegações não foram comprovadas de forma sólida, segundo as entidades médicas. Além disso, citam não haver dados para dizer que a técnica é segura. A Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora dos Estados Unidos, diz que a quantidade de ozônio necessária para ter um efeito germicida é muito superior à tolerada pelo ser humano.
“Algumas das vias de aplicação são: auto-hemotransfusão, injeção de ozônio por via intravenosa, por via intramuscular ou até mesmo entre os discos vertebrais, aplicação cutânea, insuflação retal através de um cateter introduzido no intestino, método que também pode ser realizado por outros orifícios como boca, nariz ou vagina, banho de gás, com uso de uma câmara cheia de gás ozônio para que haja inalação. A simples leitura desta relação demonstra que alguns dos procedimentos são invasivos”, disse a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) em posicionamento divulgado nesta terça-feira.
Grupos como a Academia Nacional de Medicina (ANM) e a Associação Médica Brasileira (AMB) haviam se posicionado publicamente pelo veto da lei, e criticaram a decisão do presidente Lula nesta segunda-feira, que foi contrária inclusive à orientação da ministra da Saúde, Nísia Trindade. Ao GLOBO, Francisco Sampaio, presidente da ANM, disse que a sanção da lei é uma “decepção”.
Uso fora das regras da Anvisa
A lei, aprovada no Congresso Nacional e sancionada pelo chefe do Executivo, estabelece que apenas poderão ser utilizados aparelhos de ozonioterapia devidamente regularizados pela Anvisa. Hoje, a agência permite somente para determinados fins odontológicos e estéticos. No entanto, especialistas afirmam que a legislação, além de chancelar uma prática sem base científica, abre uma brecha para que, na prática, equipamentos aprovados sejam usados com finalidades distintas.
— Em tese, o médico pode usar um aparelho aprovado pela Anvisa e aplicar para outra finalidade. Seria como prescrever o uso off label (diferente da bula) de um medicamento. Isso está dentro do que chamamos de autonomia médica. Mas ele fica sujeito à responsabilidade civil se provocar qualquer dano ao paciente — disse o diretor do centro de pesquisas em direito sanitário (Cepedisa) da Faculdade Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), Fernando Aith, em reportagem do GLOBO.
Na crítica, Teich também afirmou ser "um erro achar que o tratamento será usado apenas nas situações hoje liberadas e que somente profissionais altamente qualificados farão uso do medicamento". "Extrapolação de indicações e uso inadequado sempre podem acontecer (...) Não se pode subestimar o risco para as pessoas de tratamentos que não têm benefício clínico comprovado”, continuou.
Além disso, a lei vai de encontro ao que estabelece o Conselho Federal de Medicina (CFM). Em resolução de 2018, a entidade definiu que médicos apenas poderiam realizar ozonioterapia em caráter experimental, durante testes clínicos, por não haver “reconhecimento científico”.
Ainda assim, na prática, já é comum encontrar postagens nas redes sociais divulgando o procedimento e clínicas oferecendo uma série de tratamentos com ozônio. “As indicações propostas por seus defensores são amplas, incluindo, entre outras, as doenças autoimunes, problemas respiratórios, tratamento da infecção pelo HIV, tratamento de infecções, tratamento do câncer, doenças osteomusculares, complicações de diabetes (grifos nossos)", diz a Abrasco.
"Em muitos casos, são doenças graves que exigem tratamento adequado e podem ser agravadas por terapêuticas inadequadas”, alerta a associação. Na rede pública, em 2018, o então ministro da Saúde, Ricardo Barros, chegou a incluir, em decisão controversa, a ozonioterapia no SUS, por meio da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. Mas a pasta afirma que a técnica é usada de forma restrita à área da odontologia, feita com aparelhos registrados e autorizados pela Anvisa.
Fonte: O GLOBO
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