Anna Lembke estuda como o sexo, celular, os jogos e diversas outras substâncias são capazes de causar dependência; especialista fará palestra no Brasil

Sexo, apetrechos digitais, jogos e, é claro, álcool e drogas. Tudo que pode trazer uma sensação de satisfação intensa está passível ao uso compulsivo. Quem explica essa complicada equação é a psiquiatra e professora da Universidade de Stanford, Anna Lembke. 

Especialista em vícios, ela ficou conhecida ao revelar, de maneira didática, porque é tão difícil desapegar dos hábitos persistentes que atrapalham nossa rotina. Em resumo, trata-se de um desequilíbrio da dopamina, o neurotransmissor do prazer, que deixa um rastro de ansiedade e tristeza após inundar nossos cérebros.

A pesquisa de Anna é contada no livro "Nação dopamina: Por que o excesso de prazer está nos deixando infelizes e o que podemos fazer para mudar", lançado pela Editora Vestígio. A publicação tornou-se um sucesso e rendeu a autora um convite para palestrar no Brasil em novembro, no evento para executivos HSM+. 

Antes disso, sairá nas livrarias brasileiras — a partir da Bienal do Rio — a publicação "Nação Tarja Preta", sobre os crescente vício em remédios controlados. Ao GLOBO a especialista falou sobre como encontrar o equilíbrio em um mundo inundado de prazer, o papel da mentira para os viciados e como as famílias podem se unir para evitar que todos fiquem no celular na hora do jantar. Confira:

Por que é importante saber como a dopamina trabalha em nosso cérebro?
Nós temos que entender qual é a neurociência por trás das sensações de prazer e do sofrimento porque isso impacta diretamente em nosso bem-estar. Vivemos em um tempo, em espaços, que temos acesso a muitas substâncias altamente recompensadoras que não dá para simplesmente sair andando cegamente e achar que tudo vai ficar bem — porque não vai. 

O nosso tempo é cercado de aspectos altamente “doparminégicos”. Seja nas notificações dos celulares, ou até em consultas dos dentistas, onde há acesso a imagens e desenhos para crianças ao longo do tratamento. O efeito agregado de todas essas coisas “reforçadoras” (que dão prazer) é nos deixar infelizes, mais ansiosos e mais deprimidos. E até menos capazes de dormir. Temos que entender como nosso cérebro funciona para que possamos nos proteger.

Por vezes sentimos certa tristeza depois de um bom tempo olhando para uma leva de vídeos nas redes sociais. Por que isso acontece?

É natural que qualquer substância e atividade muito recompensadora libere uma grande quantidade de dopamina no sistema de recompensa do nosso cérebro — e esse orgão não evoluiu para receber altas doses de dopamina. 

Na realidade, ele esteve sempre preparado para receber pequenas e poucas doses de dopamina — oriundas das coisas necessárias para nossa sobrevivência. O que acontece agora é que temos acesso a esses “intoxicantes” e, diante disso, nosso cérebro tenta se compensar imediatamente para encontrar a homeostase, o equilibro. Mas ele não volta para a base dos nossos níveis de dopamina, ele vai mais para baixo (o que gera sensações ruins) e só depois equilibra-se. É uma queda livre de dopamina.

Como podemos saber quando estamos exagerando nas coisas prazerosas?

A chave é olhar para esse pós-uso. Por exemplo, se você tem uma criança que está jogando videogame e ao tirar o equipamento dela, há um acesso de raiva, é a demonstração de uma queda fisiológica (da dopamina). Mostra que o comportamento de jogar está sobrecarregando o cérebro. Esse é o preço psicológico que pagamos (pelo excesso de prazer).

Quando essa tristeza momentânea começa a indicar a presença de um vício?
Gosto de lembrar que não existe exame de sangue ou de imagem para identificar um vício, mas existe um padrão robusto que pode ser observado em diferentes grupos de pessoas, com idades distintas, culturas e etnias diversas. É um padrão que demonstra a repetição de uso compulsivo, mesmo que cause dano a si mesmo ou aos outros. 

É neste momento que devemos já começar a nos preocupar. Outra manifestação é a falta de autocuidado. Os vícios também causam ansiedade e depressão. Há também a preocupação com o volume de uso (daquela substância), mas continua no mesmo comportamento. Outro aspecto é mentir para outras pessoas sobre esse hábito, viver uma vida dupla.

Pode dar um exemplo?

Conheci uma jovem que percebeu seus problemas com a bebida após ir a um show com uma amiga. Chegando lá, ela disse a acompanhante que ia ao banheiro, mas no caminho comprou uma cerveja e bebeu tudo de uma vez, escondido, antes de reencontrá-la. Esses comportamentos são muito comuns.

Todos nós podemos nos viciar? Ou alguns são mais vulneráveis?

É verdade que cada um de nós nasce com diferentes potenciais de vulnerabilidade para o vício. Sabemos por estudos de família que, se você tem um pai ou avô biológico com alcoolismo, seu risco é acentuado para essa adicção, por exemplo. Acho, porém, que vivemos em um tempo em que há uma vulnerabilidade sem precedentes para os vícios. Para todos. A maioria das pessoas que vive em nações ricas sofre com alguma compulsão. 

Seja com comida, trabalho ou com seus aparelhos digitais. No meu ciclo de trabalho e social não conheço ninguém que não esteja lutando com comer demais, olhar o celular com exagero ou sendo workaholic, que é um vício moderno. Todos podemos nos viciar porque todos nós temos sistemas de recompensa (no cérebro).

O que acontece com o tédio? Estamos com medo dele?

A falta de tédio está relacionada ao que falo aqui. Estamos tão excessivamente estimulados que vivemos constantemente reagindo a impulsos. São poucas as oportunidades de sentar e ficar quieto. Estamos intolerantes a estar entediados, algo que é muito importante para a saúde do cérebro. Precisamos do tédio, desse tipo de tempo para, por exemplo, reanalisar um problema grave em nossas vidas.

É possível que exista uma forma saudável de fazer essas atividades prazerosas diariamente?

Claro que não vamos regredir na questão dos dispositivos digitais. Eles estão enraizados em nossas vidas. Só que é fundamental saber que quanto mais prazer sentimos, mais intolerantes nos tornamos a qualquer desconforto, justamente porque sofrimento e prazer são intrinsecamente relativos. Podemos, então, ter todo acesso a esse prazer e ainda ter uma vida feliz? Não, não poderemos.

E o tal jejum de dopamina, como é possível fazer?

O que eu recomendo é identificar para quais substâncias aquela pessoa pode ter um comportamento problemático em sua vida. Não são, necessariamente, todos os aplicativos de seu telefone, mas talvez Instagram ou as mensagem de texto ou outro qualquer. 

A pessoa tem que identificar o que é essa coisa (viciante) e abrir mão dela por quatro semanas, é o tempo que leva para reestabelecer o sistema de recompensa. Não estou falando de se esconder em uma caverna, mas de algo que é possível fazer e integrar em nossas vidas.

Esses problemas que estamos experimentando em sociedade refletem em nossas crianças. Como lidar com os meninos e meninas nesse cenário em que é tão difícil dar limites?

Eu recomendo que a família sente em conjunto, com as crianças, e tenha uma conversa sem julgamentos sobre o que cada um está consumindo demais. Pode ser o computador, o trabalho, o telefone. 

É preciso conversar sobre como isso desafia toda a família. É importante combinar em conjunto como ser mais saudável e fazer um plano. Como, por exemplo, ficar longe do celular ao longo do jantar, vale para todos. É preciso se apoiar, fazer atividades em grupo que não envolve celulares. Na minha família, jogamos cartas. É uma forma de se encorajar no coletivo.

A partir de qual idade uma criança pode ter celular?

Eu não acredito que antes dos 12 ou 13 anos eles deveriam ter seus próprios aparelhos. E eles devem fazer a própria gestão da conta desses aparelhos. É preciso que haja muita conversa, inclusive sobre pornografia, o que normalmente leva à conclusão correta de que se trata de algo estranho e grosseiro.

E como ficam as escolas?

As escolas não deveriam permitir que as crianças acessem livremente o celular ao longo do dia. Isso vai minar o trabalho que nós, como pais, estamos tentando fazer. Acho que as escolas estão renegando sua responsabilidade, não estão realmente preocupadas.


Fonte: O GLOBO