Professor em Ciências Forenses da Universidade de Winchester, no Reino Unido, Julio Ponce explica o que são as substâncias, como foi a primeira apreensão no Brasil e por que elas conseguem escapar da fiscalização
Porém, o cenário fica ainda mais difícil com o avanço das pró-drogas, formatos novos dos entorpecentes que conseguem “se esconder” da vigilância comum e não serem enquadrados como ilícitos. Isso porque se transformam na substância com potencial psicoativo apenas dentro do corpo humano, após serem metabolizados.
O monitoramento ainda é escasso, mas desde o ano passado o Brasil já teve apreensões em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Ao GLOBO, o professor em Ciências Forenses da Universidade de Winchester, no Reino Unido, Julio Ponce, farmacêutico e perito criminal da Polícia Científica do Estado de São Paulo por 13 anos, explica o que são as pró-drogas, como foi a primeira identificação no país e de que forma a fiscalização tem se adaptado mundo afora.
O que são as pró-drogas e para que elas foram criadas?
Esse conceito de pró-droga é algo que já existe há bastante tempo na indústria farmacêutica. Ele utiliza o metabolismo da própria pessoa para transformar a substância da pílula no princípio ativo. Por exemplo, por meio das reações químicas que ocorrem ao reagir com o ácido gástrico após ser ingerida oralmente.
Essa estratégia começou a ser utilizada em medicamentos em meados do século passado porque ajuda em algumas questões da distribuição da droga dentro do organismo, aumentando a sua biodisponibilidade no corpo, ultrapassando algumas barreiras fisiológicas, e ajudando na eficácia.
E desde quando há relatos do uso dessa técnica para substâncias ilícitas?
Existem relatos de variações de pró-droga de LSD desde os anos 60, mas começou a surgir com mais força no mercado ilegal por volta de 2015. Primeiro na França, depois no Reino Unido. Agora já foi detectado no Brasil, no começo de 2022.
Só que, como é uma molécula diferente daquela original da droga, devido à adição das estruturas que vão ser removidas pelo metabolismo, ela muitas vezes não é classificada como droga de abuso pelas autoridades. Então acaba sendo uma forma de evitar a fiscalização e a punição, e conseguir vender algo que vai se transformar numa droga ilícita dentro do corpo.
E no geral o efeito vai ser o mesmo. A diferença principal é em relação à duração. Como tem essa demora para metabolizar e virar a substância ativa, ela pode permanecer no organismo por mais tempo.
Como foi a primeira identificação de uma pró-droga no Brasil?
Foi ano passado, feita pelo INSPEQT, um projeto que é parceria entre a Polícia Federal, as Polícias Científicas de São Paulo e Sergipe, e de pesquisadores da USP e Unicamp. Na época, eu era diretor do Núcleo de Exames de Entorpecentes da Polícia Científica de São Paulo.
Nós identificamos uma ALD-52, que é uma pró-droga de LSD. Foi um trabalho em conjunto, a polícia deu o alerta, porque éramos nós que fazíamos essa parte da perícia na apreensão. Identificamos no laboratório, mas não tínhamos um padrão analítico para confirmar a substância, então encaminhamos uma amostra para USP, que fez a confirmação.
A apreensão mais recente de uma pró-droga no Brasil foi confirmada em março, no Rio Grande do Sul. O que acontece quando se identifica que é uma pró-droga? Ela é rapidamente identificada como uma droga ilícita?
Dentro da legislação de drogas hoje da Anvisa existem basicamente duas formas de se classificar substâncias. Ou pelo seu nome, ligado a uma estrutura específica, ou por uma questão que chamamos de similaridade estrutural. Nesse caso, existe a estrutura básica da molécula e é como se dissessem “se tiver com essa cara, mesmo que tenha uma mudança aqui ou ali, esse esqueleto básico já classifica a substância como ilícita”.
Só que essa classificação (de similaridade) vale muito mais para algumas substâncias psicoativas como os canabinoides sintéticos, que são os conhecidos como K9, K5. No caso das pró-drogas, as diferenças são suficientes para que muitas vezes elas não entrem na similaridade estrutural com a substância de origem. Por exemplo, para o ALD-52, na primeira vez que detectamos não conseguimos classificar dentro das normas da Anvisa.
Então imediatamente notificamos a agência por meio de um ofício com o relato da detecção, mostrando o que tínhamos encontrado e que estávamos preocupados, sugerindo a inclusão. Então agora a ALD-52 está definida por nome, com uma estrutura rígida, na lista da Anvisa.
Mas acaba sendo um movimento reativo. Depende de encontrarmos a droga no mercado e avisar para que seja de fato considerada uma droga de venda ilícita no Brasil.
Como é essa classificação em outros países?
Tem alguns países que fazem essa classificação por nome também, então precisa ser listada de forma direta. Aqui no Reino Unido, existe algo chamado de identificação de psicoatividade. Se tem alguma substância no mercado que eles acreditam que possa ser usada como droga de abuso, eles fazem um teste in vitro para verificar se ela interage com receptores que eles entendem como os que causam a psicoatividade.
O problema é que as pró-drogas escapam dessa classificação. Porque aquela estrutura não vai interagir com os receptores, ela precisaria passar antes pela transformação que ocorre dentro do corpo pelo metabolismo. Essa definição restritiva torna a repressão como uma droga psicoativa mais desafiadora.
Existem outras pró-drogas psicoativas conhecidas que estão circulando no mercado ilegal?
O ALD-52 é um dos precursores conhecidos de LSD, mas tem relatos de 1P-LSD e 1C-LSD, que são substâncias similares. Temos também precursores de GHB, que é uma droga alucinógena usada muito em golpes como o “boa noite, cinderela” e em situações de relações sexuais com uso de drogas. Dela, conhecemos dois precursores, a 1,4-butanodiona e a GBL. Além disso, tem alguns trabalhos que já mostram casos de MDMA (um derivado da anfetamina, conhecida como ecstasy) sendo traficados na forma de pró-drogas.
E os efeitos nocivos do abuso dessas pró-drogas, são diferentes?
Dependemos de possíveis relatos de overdose para termos essas informações mais concretas. Só que como a substância se converte na droga original dentro do corpo, o que detectaríamos nas amostras como sangue e urina não seria a estrutura de pró-droga. Por isso é muito difícil sabermos que o caso foi causado por uma pró-droga ou não.
De qualquer forma, o GHB, o LSD e o MDMA não são drogas que provocam overdoses. Os relatos na literatura são geralmente associados a outros fatores, como mistura com outras substâncias, desidratação, sofrer alguma lesão sob o efeito, mas não a overdose clássica do consumo exacerbado.
Mas obviamente esse não é o único problema do consumo de uma droga ilícita. Nós temos outros associados, como cognitivos, de desenvolvimento, de riscos de acidente, de vulnerabilidade para violência física, sexual. Então continua sendo um problema de interesse social, ainda que o resultado final muito raramente seja o óbito.
Os países têm observado o avanço dessas drogas?
Existe um monitoramento constante por parte das agências regulatórias e das universidades, mas por conta da prevalência não ser tão alta como temos para as drogas clássicas, e nem mesmo para outras substâncias psicoativas mais recentes, como os canabinoides sintéticos, as iniciativas e os recursos ainda são muito limitados.
Se pensarmos nas três grandes classes das quais temos relatos, que é o LSD, o GHB e o MDMA, são substâncias que de certa forma não tem uma popularidade tão grande quanto cocaína e cannabis. A prevalência de consumo é baixa, acaba não sendo tão atrativo (o monitoramento).
Mas obviamente é uma tendência que precisamos avaliar, porque esse mercado ilegal pode de uma hora para a outra se modificar. É importante termos esse monitoramento ativo.
Aproveitando que você mencionou os canabinoides sintéticos, conhecidos como K9, K4, entre outros, temos ouvido muitos relatos sobre eles no Brasil. É algo que preocupa?
Sim. É algo que nos últimos 20 anos tem se destacado. É uma droga que tem surgido com uma frequência e uma diversidade de estruturas cada vez maior. E representa um perigo porque, embora ative os mesmos receptores no corpo que o THC da Cannabis, e por isso tenha o nome de canabinoide sintético, ela tem um potencial de letalidade, de toxicidade, muito maior.
Por isso não vemos casos de overdose por consumo de cannabis, mas vemos muitos casos, muitas vezes letais, pelos canabinoides sintéticos. E vemos apreensões não só em São Paulo, mas no Brasil como um todo, ganhando popularidade.
Fonte: O GLOBO
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