Em uma situação de trauma, como é o caso do estupro, processar as informações pode levar anos; na Justiça, um grandes desafios é a prescrição do crime, apontam especialistas
— Depois do beijo forçado, eu desliguei. Não consegui esboçar uma reação, nem mesmo falar. Ele só foi embora quando viu que não ia conseguir a penetração. Disse que não perderia mais tempo comigo — recorda Fernanda, hoje com 38 anos. — Me culpei durante todo esse tempo. Eu não via ele como o errado, achava que eu tinha dado todas as aberturas possíveis. Até cheguei a pensar que era coisa da minha cabeça. Só entendi o que tinha acontecido no ano passado, numa palestra que assisti no trabalho sobre as diferenças das violências, do que é importunação e estupro.
A descoberta tardia de um estupro tem se tornado cada vez mais comum. Nas redes sociais, mulheres compartilham histórias de como se descobriram vítimas do crime anos depois, durante uma discussão sobre o tema, sessão de terapia ou mesmo em conversa com amigas.
Esse fenômeno tem a ver com a dinâmica do trauma, e como ele reverbera, mas também com fatores sociais, como a maior conscientização sobre o que é violência sexual. O grande desafio nesse cenário, segundo especialistas, é a prescrição do crime — há projetos de lei que propõem acabar com prazos e permitir a denúncia a qualquer momento.
Até o ano passado, Fernanda tinha o episódio de estupro quase que “bloqueado” de sua memória. A descoberta trouxe à tona detalhes que ela sequer se lembrava até então.
— Na minha cabeça só tinham alguns flashs. Depois que eu me dei conta do estupro, as coisas começaram a vir à tona. É por isso que digo que ainda estou num processo de cura. Todos os sentimentos voltam. É libertador, mas ainda é muito pesado. Fico num círculo vicioso de sentimentos que alterna entre culpa, nojo e raiva — conta ela, que não pensa em denunciar por medo de ser sofrer retaliação.
Memórias em flashes
Em uma situação de trauma, como é o caso de um estupro, o processamento de informações pelo cérebro é falho, e todo o esforço cognitivo está focado na sobrevivência da vítima, explica a fundadora do Me Too Brasil Marina Ganzarolli, que trabalha com o tema há 16 anos.
—O cérebro reptiliano domina o funcionamento do corpo e foca apenas nas questões centrais, de sobrevivência. Por isso o processamento e a codificação das informações são falhos. A vítima de estupro tem memórias isoladas, como flashs. Ela não é uma vítima colaborativa. Jamais vai entrar numa delegacia e dizer: aconteceu assim, nesse lugar e a tal hora. O relato esperado é contraditório, não linear e cheio de buracos — declara a advogada, que foi vítima de dois estupros, mas só soube do primeiro quando o segundo aconteceu. — A revelação de um trauma sexual nunca é um evento único. É um processo. A vítima vai elaborando a história ao longo dos anos.
Foi assim com Bruna (nome fictício), hoje com 23 anos. Só depois de muitas conversas com amigas da faculdade que ela se deu conta de que havia sido estuprada em sua primeira relação sexual, aos 15 anos, com um homem sete anos mais velho.
Jovem de 23 anos foi vítima de estupro aos 15 anos — Foto: Edilson Dantas/O Globo
Na época, foi convidada a assistir a um filme na casa do rapaz, um velho conhecido da cidade em que morava. Mas mal passaram-se cinco minutos e ela já estava sobre a cama dele, despida, sendo vítima de uma penetração forçada. Por diversas vezes, tentou fazê-lo parar. Mas foi ignorada.
—Eu cheguei em casa, entrei no banho e comecei a esfregar todo o meu corpo, como se quisesse arrancar algo de mim —lembra a estudante. — Por muito tempo pensei que tudo aquilo era culpa minha. Afinal, eu estava naquele dia e naquele local com ele. Só depois de cinco anos de “descoberta” do estupro é que consigo me olhar com carinho e entender que nada foi culpa minha.
Ainda que não tivesse consciência sobre a violência, a jovem sofreu com os impactos dela ao longo dos oito anos. Não conseguia se relacionar romanticamente e sentia que servia apenas para atender aos prazeres sexuais de seus parceiros.
— Revesti um discurso de liberdade sexual, quando, na verdade, estava passando por um processo de ressignificação do trauma que sofri.
‘'Cura é mais difícil'
Especialista em terapia cognitiva comportamental pela Universidade de São Paulo (USP), a psicóloga Fabíola Luciano explica que o processo de cura de uma vítima que descobre um estupro anos depois pode ser ainda mais doloroso, dado o misto de sentimentos e a falta de autopiedade.
— O sentimento de culpa é o mais frequente e pode ser o pior, pois a paciente não consegue validar seu sentimento — diz a psicóloga, segundo a qual essas vítimas têm mais predisposição a transtornos mentais como estresse pós-traumático, depressão e ansiedade. — A falta de um ambiente amoroso e acolhedor potencializa a não autopiedade da vítima. Consequentemente, ela não aceita e não consegue ressignificar o trauma, porque sente que aquela comoção não é correta.
Para a especialista, a maior presença de discussões sobre abuso sexual na esfera pública ajudou a conscientizar a população sobre os tipos de violência. Isso ajuda a explicar o aumento de casos de estupro e o boom de novas descobertas. Para se ter ideia, no ano passado, o Brasil registrou recorde de estupros, com 74.930 casos, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O delito cresceu 8% em um ano, com 37 ocorrências a cada 100 mil habitantes. Nos últimos anos, as denúncias de violação sexual aumentaram em 50%, quando considerados os números absolutos.
Em razão da grande subnotificação que ainda existe, e também da demora em se denunciar, especialistas defendem que o crime de estupro se torne imprescritível.
— Já tivemos mudanças importantes na lei. Em 2012, a Lei Joana Maranhão estabeleceu que o prazo de prescrição para abusos contra crianças e adolescentes fosse contado quando a vítima completasse 18 anos. Em 2018, com a lei da importunação sexual, o estupro deixou de ser um problema da esfera privada da vítima e passou a ser considerado um problema de interesse do estado e do Ministério Público. Agora, há projetos de lei que buscam ampliar a prescrição do crime do estupro, que atualmente é de 20 anos para estupro de vulnerável e de 16 anos para estupro — afirma Marina Ganzarolli.
*Estagiária sob supervisão Renato Andrade
Fonte: O GLOBO
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