Especialistas afirmam que o alcance do nosso modelo não é visto em outros países, mas que a prioridade é reduzir o número de carreiras no serviço público e não mexer no mecanismo de proteção de mais de 80% do funcionalismo

Dos cerca de 12 milhões de funcionários públicos no Brasil, mais de 80% são estatutários, com estabilidade garantida, só sendo demitidos em situações muito específicas como processo judicial sem possibilidade de recurso. O restante dos servidores está dividido em contratados com carteira de trabalho assinada (celetista) ou temporariamente, modelos que vêm ganhando participação nos últimos anos.

Mas essa parcela de servidores estáveis não encontra paralelo em outros países, segundo Zeina Latif, consultora econômica. Para ela, não faz sentido manter a grande maioria dos servidores estáveis, um contraponto em relação aos outros países:

— Tem que ter estabilidade, mas limitada a carreiras de Estado, com estágio probatório exigente. A pessoa hoje não precisa se esforçar, são progressões automáticas. Quando se olha a experiência internacional, não existe essa estabilidade plena, há regras que geram um grau de estabilidade, não da forma que tem hoje no Brasil, tão rígida.

Os cargos de Estado são os que não existem no setor privado, como policiais, fiscais e auditores de órgãos ambientais, tributários ou agências reguladoras, e os diversos postos do Judiciário, como juízes, promotores e procuradores.

No Brasil, a estabilidade se estende a todos os funcionários públicos, não apenas aos cargos de Estado. Isso vale para funções que também são exercidas no setor privado, como médicos e professores.

Distribuição do funcionalismo — Foto: Criação O Globo

— Em um ambiente de institucionalidade bem desenvolvida e transparência, bastaria dar estabilidade a funções típicas de Estado. Professores e médicos, que trabalham no setor público, mas que são profissões que têm correspondência no setor privado, não precisariam ter estabilidade — diz o economista Marcos Mendes, professor do Insper.

O problema é que, para Mendes, falta maturidade institucional na administração pública, muito contaminada pela política partidária:

— Quando olhamos uma institucionalidade que corre o risco de manipulação política, há situações de um prefeito ou um governador que vai demitir um monte de médico e um monte de professor para colocar outras pessoas no lugar.

Felix Lopez, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), diz que o regime jurídico único trouxe profissionalização para o serviço público, ao dar continuidade às políticas públicas, principalmente nos municípios, mais suscetíveis à política partidária mais predatória. E diz que vem aumentando a participação de contratos como celetistas, temporários e a terceirização:

— Os temporários têm mais chance de serem atingidos por sucessão política. Servidores com vínculos não estáveis têm rotatividade maior.

45 mil comissionados

Mas essa extensão do benefício para todos os cargos não é vista em outros países, segundo Humberto Falcão, professor de gestão pública da Fundação Dom Cabral:

— O Brasil é um ponto fora da curva. O regime jurídico único inclui coisas muitos distintas que deveriam ter regimes diferenciados. Estamos muito atrasados nesse debate. E qualquer pretensa ameaça a esse estado quase que de casta é imediatamente judicializado. É um arcabouço fechado.

Para proteger servidores nas trocas de governo, o ideal, na opinião do especialista, é ter regimes diferentes, mantendo a estabilidade para as carreiras de Estado.

Na visão de Mendes, é melhor não mexer significativamente na estabilidade. Ainda que reduzir cargos que têm estabilidade pudesse dar “mais flexibilidade” na alocação de pessoal, ele vê risco de “efeitos colaterais negativos”:

— Ainda temos influência muito grande de decisões políticas, patrimonialistas. Então, se fazemos uma redução muito forte da estabilidade, corremos o risco de gerar nomeações políticas e demissões políticas.

Mendes considera prioridade mudar outros aspectos, como reduzir o número de cargos e carreiras (criando cargos transversais, para trabalhar em diversos órgãos e ministérios), uniformizar postos de trabalho (para ter as mesmas remunerações), alongar planos de carreira (com salários iniciais menores e maior progressão via promoções) e basear critérios de promoção em avaliações de desempenho.

Para Carlos Ari Sundfeld, professor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, especializado em Direito Público, a alteração da estabilidade não é a prioridade no momento. Segundo o especialista, não há comprovação de correlação entre as regras atuais de estabilidade e a ineficiência do setor público:

— É verdade que tem problema de eficiência na administração pública, ligado aos agentes que trabalham? É provável que sim. Por que são estáveis? Provavelmente não por causa disso.

Sundfeld cita dois exemplos para ressaltar a falta de correlação. Alguns levantamentos apontam que cerca de metade dos professores estaduais e municipais é de temporários. Esses funcionários não têm estabilidade e, nem por isso, a qualidade do serviço é melhor, diz.

O outro exemplo é o avanço na qualidade dos programas de pós-graduação. De acordo com Sundfeld, o sistema de avaliação da pós-graduação, regulada pela Capes, agência de fomento do Ministério da Educação, é uma das melhores experiências de monitoramento de desempenho no setor público.

Para Sundfeld, a experiência da avaliação da Capes sinaliza que o que mais afeta a qualidade do serviço público “é a falta de avaliação de desempenho”.

Além dos temporários e dos celetistas, há ainda os cargos comissionados. Segundo o governo, são 45 mil atualmente, somente na administração federal, com oito mil podendo ser de fora do serviço público. O restante é reservado aos funcionários de carreira.

— Na última década tentou-se fechar a ascendência da política sobre os cargos (restringido parcela majoritária aos servidores públicos). A presença deles, inclusive em níveis intermediários, nos cargos federais nos estados, é muito grande, com influência partidária muito forte — afirma Lopez, do Ipea.

Ele diz que, nesses cargos, a rotatividade é muito alta, a permanência na mesma função não chega a 24 meses, o que prejudica a qualidade do serviço público, que exige um tempo de aprendizado. Mesmo para servidores de carreira, ao serem transferidos, a qualidade cai, afirma Lopez.

Humberto Falcão afirma que o expediente existe em outros países, mas a forma de escolha pode melhorar:

— As indicações são muito personalistas. Mesmo em governos de coalização, como o nosso, pode ter um limite, preservar os estratos mais operacionais, aumentar a racionalidade das escolhas.

Ele cita Chile, Portugal e Bélgica, que criaram uma agência de seleção e desenvolvimento de lideranças.

Governo defende

Em nota, o secretário de Gestão de Pessoal, José Celso Cardoso Junior, afirma que “a estabilidade do serviço público é uma garantia importantíssima não só do servidor e servidora, mas do Estado brasileiro”.

“No governo passado, vimos como a estabilidade foi importante para garantir a manutenção da prestação de serviços públicos importantes e como também evitou desmandos. Por exemplo, o Estado ofereceu vacinação a toda a população mesmo com a manifestação contrária do então presidente”, afirmou.

O governo é contra o projeto de reforma administrativa que está no Congresso, que limita a estabilidade às carreiras de Estado, a serem definidas posteriormente, por “criar duas classes de servidores, uma com estabilidade e outra sem, aprofundando desigualdades já existentes”. E acrescenta: “além do que a medida criaria uma corrida das carreiras no Congresso por quais conseguiriam ser consideradas carreiras de Estado e quais não.”

O professor de Educação Física do Colégio Pedro II Leandro Martins, de 41 anos, trabalha há 15 anos como professor concursado. Ele chegou a trabalhar em colégio privado no início da carreira:

— Quando a gente compara o magistério público com o privado há de fato algumas seguranças, em especial para fazer aquilo que desejamos enquanto educação.


Fonte: O GLOBO