Processo para entrar no serviço público inclui entrevistas e análise de currículo. Há países, como os EUA, que adotam tabela de remuneração única, que cruza complexidade da função e salário

Há uma onda de reformas administrativas acontecendo no mundo, principalmente depois da pandemia, que obrigou os governos a se digitalizarem rapidamente. Mudanças na forma de selecionar o servidor público, redução no número de carreiras para dar mais flexibilidade ao gestor, tabela de remuneração única, treinamento contínuo e avaliação de desempenho são as práticas mais consagradas nos países desenvolvidos, na direção de uma melhor gestão dos recursos humanos do setor público.

Essas medidas também valem para os chamados cargos comissionados, de liderança. Em mais uma reportagem da série sobre a eficiência do Estado, abordamos as práticas que vêm sendo adotadas lá fora.

A mudança começa na contratação. Entrevistas e análise de currículos são essenciais, segundo especialistas, para tentar investigar a vocação do candidato para o serviço público. Esse requisito é fundamental, na opinião do professor de Gestão Pública da Fundação Dom Cabral Humberto Falcão, para a qualidade do serviço público. Ter somente a prova objetiva não é comum nos países desenvolvidos. No Brasil, porém, só há esse tipo de avaliação:

— O processo de seleção precisa ser mais bem elaborado. E isso não se consegue somente com uma prova de conhecimento. Tem que avaliar a habilidade, atitude e, principalmente, a vocação para o setor público.

Segundo Falcão, por aqui, adota-se somente a prova de conhecimentos gerais. Esse instrumento não é usado mais na Alemanha, que tem uma burocracia similar à do Brasil. Nova Zelândia e Noruega também recorrem a outros tipos de seleção. Na maioria dos países, a prova é apenas uma etapa para escolher o servidor.

— Entrevista é vital para contratação, quase todos os países têm entrevista. O Brasil, não — diz Falcão.

Carreiras demais

Na visão de Daniel Ortega, especialista do Banco Mundial que coordenou relatório sobre o funcionalismo brasileiro quando trabalhava no país, a principal discrepância em relação a outros países é a complexidade. São muitas carreiras específicas, com diferenças formais entre órgãos, mas que, na prática, têm a mesma função.

— Há muitas carreiras e muitas rubricas. O Uruguai está tentando fazer uma reforma e simplificar. Portugal, em 2008, conseguiu diminuir o número de carreiras. Isso traz maior equidade entre os funcionários e a sociedade, o que é fundamental — ressalta Ortega.

Segundo Falcão, quando comparado com os países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE, que reúne economias desenvolvidas), o Brasil ocupa as últimas posições em gestão de desempenho e desenvolvimento de líderes.

André Marques, coordenador executivo do Centro de Gestão e Políticas Públicas do Insper, conta haver experiências no exterior de uma entidade centralizadora da gestão de pessoal. Isso tem dado certo em países como Chile, França, Austrália e EUA.

— Essa entidade estabelece as diretrizes, determina as regras. É melhor do que ter vários pequenos núcleos de gestão espalhados, o que é ruim para os servidores e para a prestação do serviço público — diz Marques.

Em relação à remuneração, Ortega cita a equiparação dos salários dos servidores com a remuneração média dos demais trabalhadores. Ele usa como exemplo dois modelos bem-sucedidos. O primeiro, adotado no Canadá e em Cingapura, usa a remuneração média do setor privado como referência para a política de salários dos servidores.

O segundo, adotado no Reino Unido e nos EUA, institui uma tabela que uniformiza o salário de todos os funcionários públicos, levando em conta apenas as particularidades regionais.

Tabela única de salários

Falcão diz que, nos Estados Unidos, a tabela começa com US$ 20 mil por ano e alcança o teto de US$ 143 mil:

—Temos que restabelecer a racionalidade do sistema remuneratório com a equivalência ao grau de complexidade do cargo. Perdeu-se isso há muito tempo no Brasil, com o movimento de diferenciação das carreiras.

Ortega observa que a pandemia deixou um legado de bons resultados em termos de produtividade com o uso do trabalho remoto em algumas funções, o que está obrigando os governos a repensarem a gestão de recursos humanos:

—Vimos uma onda global na digitalização e acesso aos serviços através de distintas plataformas. E isso, necessariamente, leva a repensar o planejamento estratégico do serviço civil. Tenho o número necessário de funcionários para prover os serviços ou preciso rever? Vários países estão começando a repensar — diz Ortega.

O governo tem anunciado que vai rever o número de carreiras no Executivo Federal e que pretende estender a progressão, para que os servidores não cheguem ao topo da carreira com 13 anos no serviço público. A intenção é estender para 20 anos.

Sem regalias, Portugal fez revisão em 2008

Em 2019, o advogado luso-brasileiro Paulo Porto Fernandes se elegeu deputado da Assembleia da República, o Poder Legislativo de Portugal, numa das vagas para representantes das regiões “de fora da Europa” — que inclui Açores, Ilha da Madeira e os nascidos fora de Portugal. Ao chegar à Assembleia, surpreendeu-se com a estrutura enxuta.

Seu gabinete era dividido com outro parlamentar, havia uma secretária para cada 20 deputados e nada de assessores exclusivos — só as comissões têm assessores técnicos.

— Como temos conhecimento da estrutura do sistema político brasileiro, fiquei surpreso, porque era muito enxuta — diz Fernandes.

Portugal fez uma reforma administrativa em 2008. Segundo relatório do Banco Mundial, o governo substituiu as “mais de mil carreiras” por “três carreiras gerais e algumas carreiras especiais”. Reduziu também o número de órgãos, segundo artigo acadêmico do professor César Madureira, da Universidade Lusíada, de 2015, que destaca entre as mudanças um novo sistema de salários em que as promoções dependem da avaliação de desempenho.

O economista Pedro Martins, professor da Nova SBE, a escola de negócios da Universidade Nova de Lisboa, ressalta que é difícil avaliar se as mudanças aumentaram a eficiência no setor público e melhoraram a qualidade do atendimento à população:

— Em 2009, foram introduzidas reduções nominais dos salários da administração pública, o que voltou a ser feito em 2012. Nos últimos anos, tem havido inflação muito elevada, portanto, em termos reais, os salários caíram bastante. Esse processo de convergência e consolidação ajuda a gestão do sistema, mas é difícil separar esses efeitos do contexto relacionado com o período de austeridade já muito prolongado.

Segundo o relatório do Banco Mundial, a reforma aproveitou as aposentarias para ajustar o número de funcionários públicos. Foi uma das medidas de austeridade. Conforme dados citados pelo artigo de Madureira, o número de servidores caiu de 747,9 mil, em 2005, para 574,9 mil em meados de 2013.

A estrutura do Estado em outros países

Portugal

Reforma de 2008 substituiu as cerca de mil carreiras por três gerais e algumas especiais. Também reduziu o número de servidores: de cada dois aposentados, apenas uma vaga é reposta. Acabou com promoções automáticas e criou um sistema de avaliação de desempenho para definir a progressão na carreira.

Reino Unido

Os servidores de dividem em 14 áreas de atuação e podem ser alocados em diferentes órgãos. Existe ainda a “entrada lateral”, processo de seleção para cargos de maior nível hierárquico, aumentando a concorrência para os servidores.

França

O país tem muitos servidores estatutários e grande número de carreiras, mas o presidente Emmanuel Macron anunciou uma reforma em 2019, incluindo a extinção da tradicional Escola Nacional de Administração (ENA), bastião do funcionalismo francês.

Em 2022, foi substituída pelo Instituto Nacional do Serviço Público (INSP). As mudanças preveem contratação por tempo determinado e mobilidade entre órgãos.

EUA e Canadá

Nos EUA, uma tabela unificada, com variações regionais, determina o salário do servidor. A remuneração cresce conforme aumenta a complexidade da função. No Canadá, o objetivo é contratar os melhores do mercado, oferecendo salário 20% maior que a média do setor privado.


Fonte: O GLOBO