Lula, no entanto, defende mais recursos para SUS e TCU avalia que governo tem capacidade de remanejar Orçamento. Senadores mostram resistência à mudança

A implementação do piso da saúde este ano se tornou um impasse bilionário. Com a aprovação do arcabouço fiscal, o governo precisa retomar o piso constitucional, mas, nos cálculos da Fazenda, isso significaria um gasto adicional de R$ 20 bilhões, que teria de sair de outras áreas, já que não está previsto no Orçamento deste ano.

Para evitar esse desgaste no primeiro ano de governo, a avaliação da equipe econômica é que o piso só deveria ser implementado a partir de 2024. A pressão contrária, no entanto, é forte. Além da resistência no Senado, que precisa aprovar a medida, o próprio presidente Lula defendeu ontem gastos maiores com o SUS.

— É preciso que a gente tenha mais recursos no SUS. Podemos levar saúde de Primeiro Mundo para todos nesse país. Temos que ter em conta que saúde de qualidade custa dinheiro. — afirmou o presidente em live, ao lado da ministra da Saúde, Nísia Trindade.

Desde 2017, os gastos com saúde eram corrigidos apenas pela inflação, conforme o previsto no teto de gastos, a regra fiscal que foi substituída pelo arcabouço. A Constituição determina que as despesas de saúde representem 15% da receita corrente líquida (o recurso disponível para gastar).

A transição de um modelo para o outro no meio do ano pôs o governo Lula diante da situação de defender gastos menores para o ano em saúde, a fim de não afetar outras áreas.

Uma saída inusitada surgiu neste mês com a inclusão de um “jabuti” — proposta que pega carona em outro projeto — pelo líder do PT, deputado Zeca Dirceu (PT-PR), no projeto de lei de compensação dos estados pelo ICMS reduzido em combustíveis e energia.

Ele considera o percentual da receita corrente líquida com base no Orçamento de 2023, que é menor. Esse dispositivo reduz o gasto adicional necessário para bancar o piso, de R$ 20 bilhões para R$ 5 bilhões.

O texto foi aprovado na Câmara, mas depende de aval do Senado, onde parlamentares já indicaram não concordar com a proposta.

— Acho que tem chance de manter o meu texto. O ministro Alexandre Padilha (Relações Institucionais) e o senador Jaques Wagner (líder do governo no Senado) estão empenhados nisso e vão falar com Rodrigo Pacheco (presidente do Senado) — afirmou Dirceu ao GLOBO.

Dificuldades no Senado

O líder do PT na Câmara tem dito a interlocutores que sua proposta é de consenso e que teria o aval da própria pasta da Saúde. A iniciativa de mudar o dispositivo teria partido da equipe econômica, com aval da Casa Civil.

No Congresso, senadores de oposição e centro criticam a diminuição do piso.

— Eu me oponho a qualquer limitação do piso constitucional — disse o líder do PL no Senado, Carlos Portinho.

Alessandro Vieira (MDB-SE) também defende que o piso constitucional seja adotado este ano:

— Sou contra um piso menor. Creio que outros senadores também são contra.

Já a senadora e presidente da Comissão Mista de Orçamento, Daniella Ribeiro (PSD-PB), considera a diminuição do piso preocupante, mas diz que vai estudar melhor a matéria:

— Eu me preocupo que haja redução na saúde. Mas ainda não me debrucei sobre o tema.

O projeto chegou ao Senado, mas ainda não tem relator nem previsão de análise na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE).

O GLOBO procurou senadores do PT, que não se pronunciaram. Mas deputados avaliam que a mudança proposta por Dirceu está pacificada no partido.

— Dentro do PT essa alteração não é um problema. É uma medida transitória. Ano que vem, volta o piso. O que não dá é remanejar esse recurso no meio do ano. Os ministérios estão andando e empenhando os recursos. Nem a Saúde conseguiria executar todo esse valor — afirma o deputado Carlos Zarattini (PT-SP).

Integrantes da equipe econômica temem sacrificar políticas públicas essenciais, para fazer frente à exigência. Um dos argumentos é que não faria sentido prejudicar outros ministérios sem a certeza de que toda a verba será empenhada e chegará na ponta, em forma de serviço para a população.

Segundo um interlocutor do alto escalão do governo, há amparo legal para não cumprir o piso por causa do princípio da anualidade (o que deixaria a vigência do piso para 2024). Como não há definição, a estratégia é ganhar tempo e aproveitar os próximos dois meses, quando será divulgado o próximo relatório bimestral de receitas e despesas, para estudar uma saída e aguardar uma decisão do Senado.

TCU não vê problema

Técnicos do Tribunal de Contas da União (TCU) emitiram parecer sobre o tema após consulta feita pelo subprocurador do Ministério Público junto ao TCU, Lucas Furtado. Ele questionou se haveria risco de paralisação da máquina pública caso o governo cumpra os pisos constitucionais. O entendimento é que a gestão do Orçamento dispõe de instrumentos para remanejar as chamadas despesas discricionárias (que não são obrigatórias).

“No caso ora analisado, não foram encontrados indícios de uma trajetória inescapável rumo à paralisia dos serviços públicos, sendo certo que gestores governamentais dispõem de instrumentos para atender aos requisitos constitucionais e legais aplicáveis à gestão das finanças e do orçamento públicos”, diz a área técnica.

O especialista em contas públicas, Felipe Salto, ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), defende que a aplicação do piso aconteça apenas em 2024:

— A meu ver, o correto seria acionar apenas ano que vem.

Marcos Lisboa, ex-secretário de Política Econômica no primeiro governo Lula, diz que só uma emenda constitucional poderia alterar a vinculação com a saúde este ano:

— Alertei que haveria um problema. A questão é que não se pode mudar isso por lei complementar, tem que ser por emenda constitucional. O que podiam ter feito era estabelecer que a vinculação à Constituição valeria apenas a partir de 1º de janeiro de 2024, e não fizeram. Aí virou uma encrenca.

No última semana, o Planejamento anunciou um novo bloqueio no Orçamento, no valor de R$ 588 milhões. Com isso, o total bloqueado este ano já soma R$ 3,8 bilhões.

(Colaboraram Renan Monteiro, João Sorima Neto e Alice Cravo)


Fonte: O GLOBO