Autores da pesquisa consideram que desigualdade pode ser explicada por maior violência sexual contra grupo mais afetado e falta de acompanhamento médico

Um estudo ganha dimensão importante no momento em que o Supremo Tribunal Federal (STF) volta a discutir a possibilidade de legalização do aborto. Especialistas analisaram dados da Pesquisa Nacional de Aborto e concluíram que a questão racial é uma variável importante no debate que chegou à Corte: independentemente da idade, a probabilidade de uma mulher negra ser submetida ao procedimento é 46% maior que a de uma branca, diz o artigo "Aborto e raça no Brasil".

De acordo com os dados da Pesquisa Nacional de Aborto dos anos de 2016, 2019 e 2021, a probabilidade de uma mulher negra fazer aborto é de 11,03%, enquanto entre brancas é de 7,55%. Essa diferença de 3,5 pontos percentuais é significativa, mas outros aspectos interferem na busca pelo procedimento entre negras e brancas. 

O estudo demonstra, por exemplo, que a possibilidade de fazer um aborto cresce com a idade. Mas a diferença persiste. Mulheres negras de 40 anos têm 21,22% de probabilidade de realizar o procedimento, ao passo que para as brancas é de 15,35%. Ou seja, as chances de uma negra recorrer ao aborto são 38% maiores.

Segundo a doutora em Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Emanuelle Góes, coautora do estudo, os índices diferentes refletem o racismo obstétrico, que afasta mulheres negras de atendimento no pré-Natal ou pós-aborto. Além disso, elas têm menos acesso a métodos anticoncepcionais e estão mais sujeitas à violência sexual.

— É importante lembrar que metade das mulheres que fazem aborto tinha menos de 19 anos na época, então estamos falando de meninas que muitas vezes são vítimas de violência sexual, mas que, sem conseguir o acesso ao aborto legal, recorrem ao clandestino. Com isso, elas se tornam as principais em internação hospitalar para finalizar o aborto, mas as questões vão se somando. É preciso pensar ainda que sofrerão mais com o estigma do aborto, que se relaciona com o racismo e o sexismo, fazendo com que estas mulheres sofram muito mais preconceito em hospitais — afirma Góes.

Emanuelle aponta também para um estudo em andamento, baseado no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) de violência, que demonstra que, ainda que as mulheres negras tenham mais probabilidade de realizar um aborto, o percentual se inverte quando são analisados os números de abortos legais feitos. 

Em geral, esses procedimentos são mais acessíveis a mulheres brancas. A pesquisadora defende que a criminalização aumenta a letalidade não só das mulheres que realizam o aborto de maneira clandestina, mas também dificulta o acesso aos cuidados de saúde na gestação e em sua interrupção:

— A criminalização prejudica até as mulheres que têm direito ao aborto legal, e as mulheres em aborto espontâneo se sentem acuadas, porque sofrem preconceito todo o tempo, seja da equipe médica, ou dos amigos e de familiares. No caso das mulheres negras, é pior ainda, porque o racismo atua para dificultar, institucionalmente, o bem-estar e o acesso aos direitos básicos de saúde.

Descriminalização em debate

A discussão sobre a descriminalização do aborto nas primeiras 12 semanas de gestação ocorre desde 2017 no STF, quando a ministra Rosa Weber pautou o processo proposto pelo PSOL. Na última sexta-feira (22/09), o julgamento voltou a ocorrer, e a presidente do STF deu um voto histórico antes de sua aposentadoria, opinando a favor do procedimento. 

O julgamento acabou interrompido após um pedido de destaque do ministro Luís Roberto Barroso, e será reiniciado no plenário físico — mantendo, contudo, o voto já proferido pela relatora. Apenas Rosa Weber votou no momento.

— A criminalização do ato não se mostra como política estatal adequada para dirimir os problemas que envolvem o aborto, como apontam as estatísticas e corroboraram os aportes informacionais produzidos na audiência pública (realizada pelo STF ao longo do processo) — destacou a magistrada.

A ministra é relatora do processo em que o PSOL propõe que a Corte exclua o âmbito criminal do Código Penal dos abortos feitos nas primeiras 12 semanas de gestação.


Fonte: O GLOBO