Segundo especialista, o quadro clínico é uma das condições que mais reduz a qualidade de vida

O ano novo é a época em que Sagrario, de 59 ano, – que não quer divulgar o sobrenome – vive quase sem vida social. Ela sofre de incontinência fecal desde o parto do segundo filho, embora a origem do problema esteja no primeiro parto, quando sofreu uma ruptura anal. A incidência da doença está entre 5 a 15% da população adulta, sendo mais predominante entre as mulheres.

As causas desta patologia são muito diversas. Em 1998, Maite Carreras, de 65 anos, sofreu uma lesão pélvica por carregar pesos diariamente em seu restaurante, que precisou ser operada para remover o seu útero e realizou o que ela define como uma provação. Constantemente defeca involuntariamente.

— Durante cinco anos vivi sentada no chuveiro — conta.

Jordi Estrade, de 48 anos, compartilha experiências semelhantes. Ele é patinador, compete pela seleção espanhola há cinco anos, mas está afastado das pistas há algum tempo. Ele tem incontinência fecal desde 2020, quando sofreu de câncer de cólon. Durante dois anos e meio comi arroz comum e frango cozido lá. Se eu tivesse que sair para fazer alguma coisa, diria um dia e meio.

Ele relata que passava entre seis a oito horas dentro do banheiro. Sua situação mudou desde então, pois, atualmente, utiliza um neuroestimulador de raiz sacral. Demorou cinco anos para criar este dispositivo.

— Você é como um marca-passo. Está ligado à coluna e às terminações nervosas para mandar o cérebro ir ao banheiro. Agora tenho um companheiro, posso viajar, comer quando quiser e sair — explica Estrada.

A cofundadora da Associação de Incontinência (ASIA), na Espanha, e cirurgiã especializada em proctologia complexa e distúrbios do assoalho pélvico, Arantxa Muñoz, explica que a patologia afeta entre 2% e 19% da população espanhola.

— A prevalência é grande porque muitas pessoas não contam. É uma das condições que mais reduz a qualidade de vida, podendo ser equiparada a um quadro reumático grave — esclarece, referindo-se ao tabu que acompanha os pacientes. Existem aproximadamente tantas pessoas com incontinência fecal quanto diabetes, segundo o médico.

O estigma é levado para todas as esferas da vida. Consuelo Ortola, de 63 anos, nasceu sem ânus e revela que só assumiu sua sexualidade aos 53 anos. A adolescência foi difícil porque, além disso, era uma época diferente. Os banheiros públicos estavam muito sujos e se você tivesse sorte havia jornal para se limpar. Agora com o neuroestimulador de raiz sacral sua vida ficou mais fácil.

Miguel Belmonte, de 54 anos, não faz planos desde abril de 2022, quando a incontinência fecal apareceu na sua vida após “possível negligência na operação a uma hérnia de disco”. Ele só saiu uma vez para jantar com a esposa e compareceu à comunhão da afilhada, mas com reserva de quarto de hotel para ir ao banheiro, sempre levando consigo uma fralda.

A patologia tem muitos graus. Muñoz explica que pode ser representado pela simples coloração de roupas íntimas, vazamento de gases ou fezes líquidas e compactas.

— Na incontinência passiva você não sabe quando ocorre a evacuação e na urgência você corre, mas muitas vezes não chega — detalha.

Os pacientes são mais propensos a sofrer outras complicações. Carreras se lembra com dor das úlceras no ânus porque as fezes são corrosivas. A enfermeira e psicóloga Eva García garante que a incontinência fecal não é considerada uma doença pela sociedade, mas sim um sintoma.

— Eles podem solicitar licença, mas têm grandes problemas para obter o reconhecimento de uma deficiência — afirma.

A presidente da ASIA, Àngels Roca, encoraja os pacientes a não se desesperarem enquanto esperam. Ele insiste que soluções e qualidade de vida cheguem. Ela levou dez anos para encontrar seu tratamento. Acabou perdendo o emprego e, o mais importante para ela, a infância dos filhos.

— Eu não queria que eles dissessem que sua mãe cheira mal. Agora, tenho três netos e sou uma supermãe. Não sinto mais falta de nada — conta Àngels.

Causas e tratamentos

A incontinência fecal costuma afetar mais mulheres do que homens, segundo o médico. Várias das causas que a causam são complicações no parto, algumas cirurgias como fístula anal, doenças neurológicas como esclerose múltipla ou lesões na medula espinhal. Além disso, algumas doenças congênitas, como espinha bífida, malformações anorretais ou doença de Hirschsprung. Além de radioterapia pélvica ou superação de cânceres digestivos, urológicos ou ginecológicos.

As soluções possíveis são muito variadas dependendo do paciente: tratamentos dietéticos ou farmacêuticos para tornar as fezes mais consistentes ou espaçar os momentos de evacuação, exercícios de reabilitação, soluções ambulatoriais como estimulação do nervo tibial posterior ou soluções cirúrgicas como neuromodulação sacral ou cirurgias reconstrutivas.

Muñoz acredita que a implantação de células-tronco ao redor do esfíncter, que é uma pesquisa em desenvolvimento, terá um grande futuro. García incentiva as pessoas a pedir ajuda. Ele enfatiza que eles não estão sozinhos e que há equipes por trás deles que podem ajudá-los a controlar a evacuação “para ter horas de paz”.

Solicitações institucionais e sociais

Dada a limitação diária, a Estrade solicita um cartão de invalidez para poder estacionar o veículo em caso de emergência. O guincho levou seu carro para estacionar incorretamente e Carreras acumula multas. Ele teve sua entrada negada no serviço em vários locais.

— Tive que trocar de carro com um amigo me cobrindo enquanto as pessoas riam — conta.

Por esta razão, Carreras exige amplos banheiros públicos adaptados a estes pacientes. Por sua vez, outros também imploram por mais financiamento. Gasta-se em média 821 reais por mês. Os tampões anais cobertos, pensos, cuecas para incontinência, toalhetes, cremes e medicamentos necessários são caros.

O dispositivo de irrigação transanal, que permite ao paciente realizar uma evacuação controlada do cólon com água morna e é uma das soluções mais eficientes segundo García, precisa ser gratuito em todos os lugares.

Arantxa acredita que a Atenção Primária pode melhorar a detecção de patologias e o encaminhamento a especialistas dentro da mesma comunidade e entre autonomias, dada a desigualdade de tratamentos nas diferentes regiões de saúde.

— Se o paciente for diagnosticado tardiamente, sua estrutura social já pode estar destruída — alerta.


Fonte: O GLOBO