Despesas sociais atingem pico histórico no Brasil. Mais foco, coordenação e fiscalização são necessários para a eficiência dos programas, dizem especialistas ouvidos pelo GLOBO

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva aprovou um novo marco fiscal, o Congresso votou uma Reforma Tributária cujas discussões se arrastavam há anos, mas o desafio de reequilibrar as contas públicas exige também uma revisão das despesas públicas e a busca por maior eficiência do Estado brasileiro.

No curto prazo, o novo arcabouço fiscal dependerá de um aumento de receitas. A Reforma Tributária vai simplificar o complexo sistema de impostos do país e melhorar a produtividade da economia. É preciso avançar agora em uma agenda de melhoria da máquina pública, com redução de desperdícios, avaliam especialistas.

Depois de publicar uma série de reportagens sobre a gestão pública, O GLOBO convida agora especialistas das mais diferentes formações e visões para discutir como aprimorar os gastos do governo.

Nesta primeira edição da segunda fase da série Estado Eficiente, a pesquisadora Laura Muller Machado, professora do Insper e autora de vários livros sobre programas sociais, e o economista Gabriel Leal de Barros, especialista em contas públicas, discutem os gastos com a parcela mais pobre da população brasileira.

As despesas totais do governo brasileiro em 2024 serão de R$ 2,149 trilhões. São gastos com Previdência, salários, investimentos. E uma parcela desses dispêndios cresceu consideravelmente: os gastos sociais.

Antes da pandemia, o Bolsa Família recebia R$ 32,8 bilhões por ano. Este ano, chegará a R$ 146,4 bilhões, 346% a mais. O programa, na verdade, é apenas um de uma lista de várias frentes de programas sociais espalhados por diferentes ministérios e que têm um mesmo objetivo: ajudar brasileiros em situação de vulnerabilidade. Auxílio-reclusão, auxílio-defeso, salário-família, auxílio-doença, Benefício de Prestação Continuada (BPC), abono salarial e bolsa qualificação são outros exemplos.

Impulso do Bolsa Família — Foto: Editoria de Arte

Pelas contas de Leal de Barros, os gastos totais com transferências de renda pelo governo saltaram de 4,9% do PIB em 1997 para 11% do PIB em 2023. Excluindo as despesas com o Auxílio Emergencial durante a Covid-19, estamos no pico da série histórica. O economista avalia que falta ao governo centralizar as informações para combater fraudes e a concessão de mais de um benefício para a mesma pessoa. :

— O governo precisa do que nas empresas se chama CIO (chief information officer ou diretor de informação), ou seja, uma pessoa responsável por consolidar e unificar todas as informações. Isso já ajudaria muito a combater as fraudes e a concessão de mais de um benefício por pessoa.

Laura, autora do livro “Diretrizes para o desenho de uma política pública para a superação da pobreza”, entende que a eficiência do gasto com programas sociais passa não só pela triagem mais focalizada entre os brasileiros que precisam, mas pela porta de saída dos programas:

— Durante a pandemia, não havia vacinas para todos, e aprendemos a montar uma fila, ainda que com imperfeições. Com os programas sociais, é preciso fazer o mesmo, definir a ordem de prioridades.

Leia a seguir a visão dos dois especialistas:

'É preciso porta de saída direcionada'

Laura Muller Machado é professora do Insper. Graduada em Administração e mestre em Economia Aplicada pela USP

A economista Laura Muller Machado — Foto: Reprodução/Youtube/Valor

"Deixar de consumir os programas sociais também é parte do direito de cada brasileiro que recebe o benefício"

O Brasil tem um leque de programas sociais gigantesco e diversificado, mas sem conexão entre eles e sem estratégia bem definida. O país trata a transferência de renda como um componente indispensável para a redução da desigualdade, mas ela não é suficiente, e muito menos central, para atingir esse objetivo.

A transferência de renda dá alívio a quem vive na pobreza e assegura o mínimo para a subsistência. Mas é preciso uma porta de saída direcionada e que atenda às necessidades específicas de cada família. A efetiva superação do problema só ocorre quando a renda gerada pela família supera a linha da pobreza. Deixar de consumir os programas sociais também é parte do direito de cada brasileiro que recebe o benefício.

Quando um paciente chega a um hospital, ele recebe um analgésico para a dor. O programa de transferência de renda é como esse remédio, que atua na emergência. Mas é preciso a análise de um clínico geral, alguém que seja capaz de identificar com precisão a doença para receitar o tratamento e superar o problema. E é justamente isso que o país não tem. Damos o remédio, por meio de programas como o Bolsa Família, mas não conseguimos ir além e curar a doença.

O Bolsa Família, embora represente uma evolução na comparação com o programa anterior, Auxílio Brasil, ainda tem falhas que precisam ser corrigidas. Uma delas está no próprio critério para o valor de concessão do benefício.

Hoje, se a renda per capita da família é menor que R$ 218, ela pode entrar no programa. E cada membro da família recebe R$ 142, mas com um piso de R$ 600. Um casal sem filhos, portanto, ganha R$ 600, ou R$ 300 cada um. Já um casal com dois filhos ganha R$ 600, mais um adicional de R$ 150 por criança. Essa família então receberia R$ 900 no total, o que daria R$ 225 por pessoa. Ou seja, quem tem filho recebe menos, do ponto de vista per capita, do que quem não tem filhos.

A mensagem para as pessoas é: “Tenha menos filhos. Com mais filhos, ganha menos.” O ideal é que não houvesse piso, mas fosse atrelado apenas ao valor per capita. Há uma desigualdade já na concessão do benefício. Se o país quer beneficiar alguma faixa específica, pode dar um valor maior para esse grupo.

A porta de saída passa pelo fortalecimento dos Centros de Referência de Assistência Social (Cras). Temos 9 mil agentes espalhados por todo o país, com capacidade para entrar em cada residência, conversar com cada família e fazer o diagnóstico do que cada uma precisa. É preciso dar mais poder para os Cras. Os assistentes sociais são formados e treinados para identificar a necessidade de cada família.

Se aquela família é uma mãe solteira, com uma criança pequena e sem acesso a creche, o assistente social vai atuar para conseguir uma vaga. Se é um idoso que não tem acesso a água potável e esgoto, aciona os mecanismos para concessão de cisternas de água.

Durante a pandemia, não havia vacinas para todos, e aprendemos a montar uma fila, ainda que com imperfeições. Com os programas sociais, é preciso fazer o mesmo, definir a ordem de prioridades.

Para que os pobres consigam efetivamente entrar no mercado de trabalho, é necessário que esse grupo receba assistência continuada e individualizada de agentes de desenvolvimento familiar e comunitário. Em parceria, eles devem formular e implementar planos de desenvolvimento e superação da pobreza.

Via de regra, essas famílias precisam da garantia de uma renda mínima, de prioridade no acesso a uma série de bens e serviços e de assistência para conseguirem se inserir nos meios de produção.

Inteligência e estratégia levarão o país a ser mais eficiente com os gastos sociais. Isso permitirá não só que se tenha melhores resultados, mas redução de despesas.

'Falta avaliar e cruzar dados'

Gabriel Leal de Barros é sócio e economista na Ryo Asset e especialista em contas públicas

O economista Gabriel Leal de Barros — Foto: Carol Carquejeiro/Valor

"Governo acaba gastando mais para atingir o mesmo resultado. É como dar um tiro de canhão para matar uma formiga"

Ao mesmo tempo em que negocia com o Congresso a aprovação de medidas para aumentar a arrecadação, o governo precisa acelerar a agenda de corte de despesas. Parte disso passa pela maior eficiência dos gastos sociais, que continuam mal elaborados e mal avaliados, apesar de essa ser uma pauta de maior interesse de governos de esquerda.

Somente com o abono salarial, o governo federal tem espaço para economizar em torno de R$ 20 bilhões por ano, com a melhor focalização do programa. Não faz sentido que um trabalhador que receba dois salários mínimos por mês seja elegível para ganhar o abono, que é uma espécie de 14º salário. Ele já está distante da pobreza.

A redução da linha de corte para a elegibilidade, de dois salários mínimos para um, já traria essa redução bilionária nos gastos. Esse é, por exemplo, o quanto o governo espera arrecadar com o projeto de tributação dos chamados fundos exclusivos (fechados para alta renda) e offshore (no exterior).

A restrição do abono poderia ser feita de forma gradativa, ano a ano. Ainda assim, seus efeitos sobre a economia seriam imediatos, porque o mercado iria trazer esses ganhos a valor presente, projetando menos déficit e menos endividamento público. A consequência seriam juros mais baixos pagos pelo Tesouro, queda das expectativas de inflação e mais crescimento econômico. Tudo isso ajudaria a reduzir a desigualdade no país, objetivo principal dos programas sociais.

Outro ponto importante é o cruzamento de dados entre os beneficiários dos programas para diminuir a sobreposição de benefícios. Hoje, há casos de brasileiros que recebem até cinco benefícios diferentes, sem que o governo saiba que isso está acontecendo.

Um estudo do Banco Mundial estimou que de 10% a 20% dos benefícios sociais brasileiros são mal focalizados. Em uma conta conservadora, uma melhora de 10% nessas despesas poderia economizar outros R$ 20 bilhões. Por gastar mal, o governo brasileiro acaba gastando mais para atingir o mesmo resultado. É como se precisasse dar um tiro de canhão para matar uma formiga.

A unificação dos programas sociais ajudaria a reduzir custos e a ampliar resultados. Há muita fraude, por exemplo, no seguro-defeso. Um cruzamento entre o número de pessoas que recebe esse programa e o número de pessoas que se declara pescador ao IBGE mostra que a discrepância é enorme. A checagem não é eficiente.

O caminho para isso é melhorar a digitalização de informações do governo federal. O CadÚnico significa um grande avanço, mas está longe de atender às necessidades do Estado brasileiro. O governo permanece analógico em relação às próprias informações.

O Pix revolucionou o meio de pagamento no país e foi desenvolvido por servidores do Banco Central durante o período de isolamento na pandemia. Os sistemas do governo, por outro lado, não conversam um com o outro.

O Dataprev reluta em passar informações, a Receita mantém os seus próprios dados, há informações em um ministério que não chegam ao próximo. Falta ao governo o que no setor privado seria chamado de chief information officer, um chefe que trabalhe para integrar todos os dados e informações.

Um órgão acha que vai perder prestígio e poder político se disponibilizar as informações para outros entes públicos. Essa é uma agenda que não depende do Congresso, pode ser conduzida pelo próprio Poder Executivo. Mas não parece ser a prioridade.

Em 2017, o governo Temer economizou R$ 17 bilhões com um pente-fino no auxílio-doença. A ministra do Planejamento, Simone Tebet, disse que revisão de benefícios do Bolsa Família já economizou cerca de R$ 7 bilhões este ano. Esse é o caminho, mas é preciso acelerar essa agenda.

A melhor consolidação fiscal é aquela que corta gastos, de um lado, e aumenta receitas, de outro. Grosso modo, é como se a pessoa combinasse atividade física e dieta mais saudável para tentar perder peso. Não é essa a estratégia do governo brasileiro.


Fonte: O GLOBO