Segundo especialistas, o fenômeno pode acontecer durante momentos de emoções exacerbadas e está ligado a sobrecarga sensorial

Em meio a um período de diversos festivais e shows acontecendo no Brasil, fãs abrem mão de qualquer coisa para estar perto de seus ídolos. Porém, alguns deles estão encontrando uma barreira ao final desse encontro tão esperado. O “esquecimento pós-show”, ou “amnésia pós-show”, é um fenômeno em que as memórias se tornam nebulosas depois da pessoa comparecer à apresentação ao vivo de um artista.

Os relatos desses casos começaram após diversos fãs americanos da cantora Taylor Swift compartilharem depoimentos sobre esse esquecimento poucos dias, ou até na mesma noite, depois de comparecerem à The Eras Tour. Eles lembravam que haviam comparecido ao show, de que ele aconteceu e em alguns casos, de poucos detalhes, mas era difícil até mesmo citar quais músicas foram tocadas. A repercussão fez diversos brasileiros compartilharem como isso também havia acontecido com eles em shows de outros cantores.

Para entender quais fatores podem estar por trás do fenômeno, como acontece, o que se lembram agora e como se sentem por terem esquecido o GLOBO conversou com três jovens. Eles relataram suas experiências após esquecerem momentos importantes de eventos "impossíveis de esquecer".

Larissa Magar, de 25 anos, viajou até São Paulo em fevereiro deste ano para ver pela pessoalmente pela primeira vez o seu grupo de K-pop favorito, Super Junior, o qual acompanha há pelo menos 11 anos. Ainda que tenha ficado em um local próximo ao palco, a moradora da Baixada Fluminense têm as recordações de um dos dias mais aguardados por ela apenas no celular.

Quando a primeira música começou, ela relata que não conseguiu conter a emoção por poder estar ali, em um show deles ao vivo.

— Eu fiquei com o coração disparado porque percebi que depois de 11 anos eu estava ali vendo um grupo que eu pensei que nunca eu conseguiria ver e foi uma realização. Então eu chorei por estar ali, por ter tido essa aventura com as minhas amigas e por ter conseguido fazer essas coisas sozinha pela primeira vez — relembra.

O êxtase de ter assistido ao show pelo qual esperou por anos foi substituído pelo banho de água fria de não se lembrar do que aconteceu no dia seguinte.

— Eu não lembrava de ter visto várias coisas. Até algumas músicas eu não lembrava que eles tinham cantado até ver depois as gravações que fiz no meu celular. A ansiedade e o cansaço me consumiram mesmo perto da hora de abrir os portões, ali a minha ficha caiu — relata a estudante.

O mesmo aconteceu com Gabriela de Souza Vieira, estudante do interior de São Paulo que foi à capital paulista assistir ao show de Harry Styles depois de uma espera de 12 anos. Ainda criança ela já sonhava com o dia em que poderia assistir ao cantor britânico pessoalmente. De acordo com a jovem, em nenhuma das outras passagens do astro pelo Brasil as coisas deram certo.

— Foram 12 anos de espera, mais ou menos 4.480 dias. E com certeza foi o melhor dia da minha vida. Não lembro de quase nada do show, não lembro nem das emoções. Mas eu lembro o antes e o pós perfeitamente — comenta.

Ainda que seja grata pelos momentos vividos, Gabriela confessa que se sente muito triste por não poder contar com as suas próprias lembranças desse dia especial para ela. Além disso, outras dificuldades também influenciaram a experiência, antes mesmo da performance começar, ela sofreu um mal estar causado pelo nervosismo do seu sonho se realizar.

— Esperei esse show praticamente a minha vida inteira e quando finalmente acontece eu simplesmente esqueço. Eu tento não pensar muito nesse dia porque me deixa genuinamente triste — desabafa.

A preocupação também se estende para os shows que ainda vão acontecer. O carioca Mounir Maataoui, de 23 anos, recentemente assistiu à performance da cantora Lana Del Rey, em sua passagem pelo solo carioca no Festival MITA, e teme pelo próximo.

— Isso já aconteceu em vários shows. Logo depois que eu saí do show da Lana eu estava no metrô vendo os meus vídeos e não lembrava mais. Eu fiquei pensando “gente, quando aconteceu isso?”, sendo que a diferença de tempo era de no máximo 40 minutos. É algo tão grandioso para você que você tende a esquecer mais rápido. E isso eu acho que acontece com várias coisas que são importantes para uma pessoa. Agora em novembro eu vou no da Taylor Swift, estou me preparando para ser uma experiência única, mas já sei que não vou me lembrar de nada. Só vou conseguir ver o que eu tiver registrado no meu telefone — conta o jovem.

Especialistas explicam o fenômeno

Ao se levar em consideração a quantidade de aparatos pirotécnicos utilizados nas grandes apresentações, além das mudanças de figurino e extensas setlists, os shows trazem muitas informações para uma pessoa processar em pouco tempo.

O psicólogo e professor de Psicologia Cognitiva na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Carlos Eduardo Norte, aponta que essa sobrecarga sensorial atrapalha o fluxo de criação de novas memórias. Como a atenção do ser humano é seletiva, por ter uma capacidade máxima, o cérebro não dá conta de tantos estímulos ao mesmo tempo.

— O primeiro passo dessa jornada até ser formada a memória começa no senso de percepção, a informação chega aos nossos sentidos pela visão, audição, e a partir disso tem a nossa capacidade atencional, onde alocamos atenção pro estímulo. Se a informação é filtrada, o que vem de memória armazenada é o que vem depois desse filtro. Na memória a gente fala que existe a memória de curto prazo, a que mantém aquilo por alguns minutos, se a informação for muito importante ela dura, mas se não for, ela se perde — explica.

Todo esse processo ocorre no lobo temporal do cérebro, como esclarece Raphael Spera, neurologista especialista em Neurologia Cognitiva e do Comportamento e membro da Academia Brasileira de Neurologia (ABN).

O Circuito de Papez, um sistema límbico ligado à consolidação e codificação da memória, é uma rede neuronal localizada próxima à região da amígdala, responsável pelo processamento das emoções. Eles são adjacentes e por conta da proximidade, ela faz com que emoções muitas vezes ativem mais esse circuito de memorização.

— Quando esses sentimentos extrapolam o grau normal, se tornando em uma ansiedade ou uma agitação, isso pode gerar um impacto negativo no processo de memorização — pontua o neurologista.

O fenômeno não se restringe apenas aos shows. Momentos que demandam emocionalmente do cérebro, como casamento, formatura ou nascimento dos filhos, tendem a ativar o sistema de memorização. Mas, devido à sobrecarga sensorial, pode vir uma sensação de “dar um branco” durante o momento e eventualmente, a perda da memória.

Os especialistas dizem que a principal explicação para o fenômeno está nessa exacerbação dos sentimentos.

— Nessas situações, a gente observa uma hiperativação emocional. Devido a essa alta valência emocional a forma que ele vai ter de codificar a emoção e guardá-la é diferente — pontua Carlos Eduardo.

Diferentes informações estimulando diferentes sentidos da pessoa, também acabam dividindo a atenção. De acordo com o psicólogo, esse excesso de estímulos torna a atenção seletiva, que tende a filtrar mais o que entra para a consciência e o que não entra. Além disso, com a liberação da adrenalina, pelo estresse causado pela ansiedade, a pessoa entra em um estado de alerta. O cérebro, extremamente estimulado, não consegue transformar essas informações em memórias de longo prazo.

— A pessoa não consegue processar todas essas informações ao mesmo tempo — complementa o psicólogo.

Outro ponto levantado pelo especialista é que gravações com celulares e câmeras digitais funcionam como vilãs. Para ele, a piora no processo de memorização também pode ser vinculado a essa troca de atenção.

— Se você não estiver pleno para captar o evento com seus os próprios sentidos, mas estiver preocupado em transmitir ou tirar foto, o seu foco atencional se divide. Se você divide essa atenção, ela já vem pobre — conclui o especialista em Psicologia Cognitiva.

Como evitar?

O aconselhado para aproveitar ao máximo a experiência de um show ao vivo é ter uma noite anterior com um sono de qualidade, procurar maneiras de relaxar antes da entrada no local e levar aquele momento de maneira intensa, mas que seja prazeroso. Para além de preparar uma rotina equilibrada um dia antes, uma técnica recomendada pelo professor Carlos é a de associar aquilo que está sendo vivido com outras lembranças de coisas que tenham acontecido anteriormente.

— A memória funciona muito bem quando você associa ela a outros momentos. Se você associar a música com algo que você viveu, com pessoas, com sonhos, ela consegue fazer uma “cola”. O mais importante é curtir o momento, e tentar fazer isso de uma maneira prazerosa — o psicólogo aconselha.


Fonte: O GLOBO