Apenas 12 terras foram oficialmente regularizadas e outras 56 identificadas enquanto remanescentes de quilombos desde o começo do ano

Meta anunciada pela ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, a garantia de posse da terra para ao menos 300 quilombos até dezembro de 2026 parece distante de se tornar realidade até para os empenhados na causa. As diversas etapas do processo de regularização fundiária fazem com que o reconhecimento definitivo demore a andar e o esvaziamento do Incra, responsável por boa parte dos trâmites burocráticos, no governo Bolsonaro, piorou as perspectivas, para quem acompanha a questão.

O objetivo seria alcançado, segundo a ministra, a partir do Programa Aquilomba Brasil, que visa mapear até março de 2024 a situação geral dos processos de regularização fundiária, mensurar o custo da titulação e estabelecer formas de acelerar o processo. Mas de acordo com dados da Comissão Pró-Índio de São Paulo, no primeiro ano do governo Lula, apenas 12 terras foram oficialmente regularizadas e outras 52 foram identificadas enquanto remanescentes de quilombos, até agora.

‘Processo complexo’

Hoje, existem 316 territórios quilombolas com áreas delimitadas pelo Incra, com Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) publicados — uma das etapas iniciais até a outorga do título.

Veja o longo caminho da titulação de territórios quilombolas no Brasil — Foto: Editoria de Arte

— É um processo complexo porque envolve diferentes órgãos e muitas etapas de identificação e demarcação, além das disputas fundiárias que ressaltam desigualdades de classe e raça. É uma dificuldade conseguir regularizar todo esse atraso de governos anteriores em um curto espaço de tempo. Mas é louvável que exista uma preocupação em acelerar — afirma a secretária-geral de Articulação Institucional da Defensoria Pública da União, Charlene Borges.

Somente o reconhecimento do quilombo é feito pela Fundação Palmares. As demais etapas cabem ao Incra, a partir da elaboração do RTDI, publicação desse relatório, homologação pelo governo federal, desapropriação (caso outros grupos ocupem a área), e por fim, a chamada regularização fundiária. 

Em ofício encaminhado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) ao governo federal, a entidade ressalvou a necessidade urgente de aumentar a força de trabalho no Incra, assim como reestruturar a proposta de orçamento destinado aos quilombolas, e criar um sistema informações.

Questionado sobre as medidas para regularizar os quilombos, o Ministério da Igualdade Racial informou que a “previsão de orçamento para indenizações visando desapropriação para fins de regularização de territórios quilombolas saltou de 196 mil reais, em 2023, para 137 milhões previstos para 2024”.

À espera da garantia definitiva de reconhecimento de seu território e de sua cultura, comunidades quilombolas enfrentam problemas para ficarem onde estão tanto em comunidades rurais quanto em espaços urbanos. 

No mês passado, o quilombo Vila Kédi quase foi removido da Zona Norte de Porto Alegre, por uma determinação judicial suspensa há uma semana pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Mas três casas chegaram a ser derrubadas pela prefeitura, que inicialmente havia conseguido autorização para retirar as famílias do local mediante uma indenização de R$ 180 mil.

Certificado como área remanescente de quilombo em março, a comunidade de 120 famílias é uma das mais de 1,8 mil que entraram com processos de regularização fundiária. Ele é ocupado há mais de um século ao lado do Country Club de Porto Alegre, com um campo de golfe de 50 hectares que é considerado um dos melhores do Brasil.

O nome do quilombo vem justamente de caddie, nome em inglês dos carregadores de tacos de golfistas.

Vizinho à Vila Kédi também estão dois grandes shoppings, que tornaram a região uma das áreas mais nobres da capital gaúcha. Para Biko Rodrigues, coordenador executivo da Conaq, a especulação imobiliária é um dos principais motivos para as tentativas de remoção da comunidade.

— O Quilombo Kédi aguarda uma visita do Incra e estamos buscando caminhos para regularizar o mais rápido possível o local, que sofre com o racismo fundiário — afirma.

A Procuradoria-Geral do Município, que pretende recorrer da decisão do Tribunal de Justiça, afirmou que sete famílias assinaram acordo com a prefeitura, entre outras 80 que também manifestaram interesse em deixar o local. Conforme o Plano Diretor, parte da área seria transformada em praça, área verde e via pública.

A especulação imobiliária também ameaça a Comunidade Arturos, que existe há 133 anos em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. O quilombo já foi reconhecido como patrimônio imaterial pelo governo de Minas Gerais. Mas aguarda há quase duas décadas pela regularização da terra.

A comunidade fez o pedido de titulação no primeiro governo Lula, em 2003. O Incra não informou um prazo para a conclusão do processo. O temor das 180 famílias da Arturos é perder a cultura de seus ancestrais, que engloba músicas, danças e ritos.

Perda de espaço

Em Quatis (RJ), o Quilombo Santana enfrenta o isolamento, além do interesse de vizinhos da área de 723 hectares que contam terem recebido em 1903 como doação da filha do Barão de Cajuru, grande fazendeiro do município. Mas a terra de 723 hectares ainda não está em posse total dos cerca de 230 quilombolas, que atualmente ocupam apenas 4 hectares. O restante do terreno está com agricultores que ainda não foram desapropriados pelo Incra.

— Em 1999, 12 fazendeiros ocupavam a área. Até hoje, apenas três saíram, mesmo o quilombo tendo sido certificado pela Fundação Palmares nos anos 2000. Vivemos anos de ameaças contra nossas lideranças e, apesar de hoje a situação ser menos perigosa, ainda vivemos à margem por não termos acesso digno a saneamento básico e transporte — conta Cristiana Moreira, uma das lideranças dos Santana.


Fonte: O GLOBO