Seleções conquistam feitos em meio a cenários de liga local parada, impossibilidade de atuar em seu território, devastação e mortes
Os jogadores da seleção palestina não são de usar redes sociais para se posicionar sobre o conflito com Israel. Mas, na vitória sobre Hong Kong (3 a 0) pela última rodada da fase de grupos da Copa da Ásia, na última terça, no Catar, o recado foi dado. Os jogadores se juntaram para comemorar o primeiro gol com o símbolo do “V”, identificado com a histórica luta por reconhecimento de seu território. Após o jogo, o meia Oday Kharoub e o atacante Mahmoud Wadi ainda exibiram o “110” em seus corpos, numa referência ao número de dias do confronto atual.
A ocasião era apropriada. Foi um jogo para estimular o sentimento nacionalista. Pela primeira vez em sua História, a Palestina avançou às oitavas de final da competição continental, da qual ela participa pela terceira edição. O resultado representou ainda um triunfo inédito da seleção no torneio. Conquistas que trazem esperança num momento em que o futebol palestino agoniza.
A liga local está paralisada desde outubro, quando ataques do grupo Hamas a Israel mataram mais de 1,2 mil (a maioria civis) e deram início a uma contraofensiva militar na Faixa de Gaza que dura até hoje e registra mais de 25 mil vítimas fatais entre os palestinos. Não há previsão para a bola voltar a rolar por lá.
O meia Oday Kharoub e o atacante Mahmoud Wadi exibem o número 110 em seus corpos, numa referência ao total de dias do conflito entre Israel e Palestina — Foto: Giuseppe Cacace/AFP
Um dos maiores símbolos do impacto do conflito no futebol é o o estádio Al-Yarmouk, em Gaza. Ele foi tomado por soldados das Forças de Defesa de Israel e transformado num centro de detenção.
Até mesmo a West Bank Premier League, na Cisjordânia, o maior dos dois territórios palestinos, foi interrompida. É de onde vem quase a metade dos atletas que defendem a seleção na Copa da Ásia — os demais são do exterior; ninguém atua em Gaza.
No final de outubro, numa operação que envolveu a Autoridade Palestina e o príncipe da Jordânia Ali Bin Al Hussein, um grupo de 20 jogadores comandado pelo tunisiano Makram Daboub conseguiu cruzar as fronteiras para se preparar e jogar as duas primeiras rodadas da Eliminatória asiática para a Copa 2026, contra Líbano e Austrália. Mas eles foram obrigados a mandar o duelo com os australianos no Kuwait. Voltaram para casa com um empate e uma derrota.
No fim de dezembro, mais uma vez a seleção deixou o território palestino. Os jogadores que atuam nos clubes locais passaram por um período de treinamento na Argélia. Em seguida, foram para o Catar, sede da Copa da Ásia.
Foi neste período que os jogadores receberam uma dura notícia: a morte de Hani Al-Masdar, um importante ex-jogador que atuava como técnico da seleção olímpica da Palestina. Sua casa fora destruída após um ataque aéreo na vila onde ele morava, em Gaza.
Segundo a imprensa árabe, desde outubro 88 atletas palestinos de diversas modalidades morreram em decorrência do confronto. Destes, 67 eram do futebol. É este contexto que tornou a classificação inédita às oitavas ainda mais emocionante para a seleção local.
— Isto é para o povo da Palestina. E transmitimos uma mensagem ao resto do mundo de que estas são pessoas que merecem uma vida melhor e que amam a paz e a liberdade — afirmou o técnico Daboub.
Os jogadores da Síria celebram a classificação para as oitavas de final da Copa da Ásia após vitória sobre a Índia — Foto: Karim Jaafar/AFP
A Copa da Ásia foi palco ainda de outra classificação inédita de um país também devastado: a Síria, que há 13 anos vive guerra civil e, em 2023, ainda foi atingida por um terremoto de grandes proporções que matou mais de 6 mil pessoas.
É verdade que a seleção nacional não une a população de forma unânime, já que críticos ao governo a veem como instrumento de propaganda do regime de Bashar al-Assad. Um vídeo que circulou nas redes sociais alimentou este sentimento. Após a vitória sobre a Índia (1 a 0) que rendeu a vaga, os jogadores gritaram slogans pró-governo no ônibus. “Nossa alma, nosso sangue sacrificamos por você, Bashar”, cantaram.
Ainda assim, foi um feito marcado pela emoção. O choro e o abraço entre o jornalista sírio e o tradutor do técnico da equipe, o argentino Héctor Cúper, na entrevista pós-classificação resume o sentimento em torno da conquista. Devido à Guerra Civil, a seleção não atua em casa desde 2010. Dos 26 inscritos na Copa da Ásia, apenas oito atuam em clubes locais.
Sírios e palestinos conhecerão hoje, quando termina a fase de grupos, seus rivais nas oitavas. Certo é que não se cansam de sonhar.
Fonte: O GLOBO
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