'Um defeito de cor', romance histórico de 950 páginas que inspirou enredo da azul e branco, esgotou em livrarias on-line. Record corre para repor estoques e não descarta nova edição da obra

“Saravá, Kehinde! Teu mundo vive!”, canta o samba-enredo da Portela neste carnaval, inspirado em “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, tema escolhido pela escola. Os versos turbinaram as vendas do livro lançado em 2006, esgotando o estoque no próprio site do Grupo Editorial Record — onde é possível comprar a edição especial da obra, lançada em outubro de 2022.

Na Amazon, a obra cantada pela azul e branco de Madureira está no topo dos livros mais vendidos, como antecipou o colunista do GLOBO Ancelmo Gois, enquanto a edição especial figura em quinta colocação. O preço da obra também decolou. Buscar na internet trazem exemplares disponíveis por até mais de R$ 240.

A Record informou que, diante “da repercussão muito acima do esperado”, está repondo o estoque. E que, caso necessário, haverá nova edição do livro para suprir a demanda.

O romance histórico “Um defeito de cor” conta — ao longo de 952 páginas — toda a jornada de Kehinde, uma mulher negra traficada ainda criança do atual Benin para a Bahia. A escritora criou a personagem com base em pesquisas feitas sobre Luísa Mahin, mãe do poeta Luís Gama, figuras centrais da Revolta dos Malês. A escola reconta essa história, fala de racismo e de mães que perderam seus filhos.

A Portela é apontada como uma das favoritas ao título de melhor escola do Grupo Especial este ano. E já levou prêmios de melhores escola, enredo e personalidade (para histórica porta-bandeira Vilma Nascimento) pelo Estandarte de Ouro, do GLOBO e do Extra.

Capa da edição especial de "Um defeito de cor", lançada em 2022 — Foto: Reprodução

Mais de 100 mil livros vendidos

Ao todo, desde o lançamento, a obra já vendeu mais de cem mil exemplares. Até a publicação desta reportagem, o site da Livraria Cultura só mostrava disponibilidade da edição especial ou do e-Book de “Um defeito de cor”. Na página da Leitura, a versão comum contava apenas duas unidades em estoque, enquanto a especial apontava uma.

— De 2017 para cá, o livro “Um defeito de cor” tem vindo numa crescente, acompanhando uma mobilização maior do Brasil em torno das questões raciais, em busca da história não oficial de nosso país colonizado — diz Livia Vianna, editora executiva do Grupo Editorial Record.

Ela conta que, ao longo do ano passado, houve diversas conversar com a Portela, com a autora se aproximando muito da escola, participando de oficinas e clubes de leitura.

— Tivemos um evento de autógrafos na Quadra (da Portela) onde o livro esgotou — conta Livia. — Bianca Monteiro, Rainha de Bateria da Portela, lançou um curso 'Quem foi Kehinde', com a participação de Ana Maria Gonçalves, que foi muito bonito.

Capa tradicional do livro — Foto: Reprodução

Carnaval amplifica história

Para Ana Maria Gonçalves, esse boom em buscas pelo livro se justifica pela potência do carnaval carioca como fonte de conhecimento:

“Essa novidade de a gente trazer uma história que é tão nossa para a Avenida, e o samba nos ensina desde sempre. A música é nossa inscrição no mundo. E o samba é o que fala ao brasileiro”, destacou ela em entrevista à TV Globo logo após participar do desfile da Portela.

Desfile da Portela levou Charles Rosa de Freitas a comprar "Um defeito de cor". Ele é membro do Comitê de Diversidade e Inclusão do Gondim Albuquerque Negreiros Advogados, que conta com um mural retratando Luís Gama em sua sede — Foto: Arquivo pessoal

O advogado carioca Charles Rosa de Freitas — que nasceu em um 2 de dezembro, Dia do Samba — está entre as pessoas que se interessaram pela obra acompanhando o desfile da Portela.

— Trabalho em um escritório que fica em um casarão chamado Luís Gama. Fui pesquisando e vi que ele se tornou um expoente do Direito. Fui buscar o livro e vi já informações de que estava difícil comprar um exemplar. Conseguir na Amazon, mas via terceiros, sendo que a entrega, que em geral é em até 48 horas, será apenas na semana que vem.

Membro do Comitê de Diversidade e Inclusão do do escritório Gondim Albuquerque Negreiros Advogados, Freitas não considerou comprar a versão eletrônica do livro, explicando que este “é um livro para ter sempre”.

Impulso também ao livro que inspirou a Grande Rio

É da Record também “Meu destino é ser onça” (lançado em 2008, com nova edição de 2022), de Alberto Mussa, por trás do desfile da Grande Rio deste ano, que levou uma série de inovações tecnológicas ao Sambódromo. A obra chegou a figurar entre os 200 mais vendidas da Amazon, informou a editora, o que nunca havia ocorrido antes deste carnaval.

A edição especial de “Um defeito de cor” — com o conto inédito afrofuturista “Ancestars” e com artes de Rosana Paulino — foi lançada juntamente com a exposição de mesmo nome no Museu de Arte do Rio (MAR), que tem curadoria Ana Maria Gonçalves, Marcelo Campos e Amanda Bonan. Desde novembro passado, a mostra ocupa o Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira, marcando a reabertura do espaço, em Salvador, na Bahia.

O mercado de livros fechou 2023 com 4,99 milhões de exemplares vendidos, uma queda de 13,41% na comparação com o ano anterior, mostra o Painel do Varejo de Livros no Brasil, elaborado por Nielsen BookScan.

Dante Cid, presidente do Sindicato Nacional de Editores de Livros (Snel), explicou que o mercado editorial passou o ano de 2023 buscando alternativas para ocupar, mesmo que em parte, a lacuna deixada por livrarias que saíra do mercado. A Saraiva e a Cultura, que já contaram com amplas redes de livrarias físicas, tiveram falência decretada pela Justiça.


Fonte: O GLOBO