Quando se soube que o próprio presidente Lula arbitrou a disputa em torno dos dividendos extraordinários da Petrobras e mandou que seis conselheiros votassem contra o pagamento, o presidente da companhia, Jean Paul Prates, correu para negar:
— Não houve ordem do presidente Lula — afirmou ele, dizendo que as informações a respeito e o abalo na Bolsa em torno do tema eram “espuma”.
Horas depois, o próprio Lula desmentiu Prates. Numa entrevista ao SBT, admitiu que teve “uma conversa séria com a administração da Petrobras”, “porque é preciso a gente pensar no povo brasileiro”. O presidente foi direto:
— Se eu for atender apenas à choradeira do mercado, não faço nada — disse Lula. — O mercado é um rinoceronte, um dinossauro voraz, quer tudo para ele e nada para o povo. Será que o mercado não tem pena das pessoas que passam fome?
Na opinião do chefe do Executivo, a Petrobras bate recordes de produção, de exportação e de arrecadação, “e a gente não ganha nada com isso”. Seria importante que o presidente dissesse quem é “a gente”, porque 37% de tudo o que a empresa distribui vai para o caixa do Tesouro — R$ 20 bilhões só em 2023 e outros R$ 72 bilhões em 2022, que ajudaram a pagar gastos com Bolsa Família, educação e saúde.
Se há espuma nessa discussão, ela ofusca não o que aconteceu na semana passada, e sim quanto as coisas já mudaram na Petrobras neste terceiro mandato de Lula.
Quando a pendenga dos dividendos começou, as manchetes sobre a empresa estavam concentradas em outro assunto bem menos confortável de discutir diante dos microfones: um contrato em que a Petrobras se dispõe a perder meio bilhão de reais em oito meses para salvar da bancarrota a Unigel, uma fabricante de fertilizantes com bons amigos no governo.
Em 2019, ainda durante o governo Bolsonaro, a Unigel arrendou da Petrobras duas fábricas, uma na Bahia e outra em Sergipe, quando a companhia passou a se desfazer de negócios que considerava menos rentáveis. Nos primeiros anos, a guerra da Rússia contra a Ucrânia levou à escassez de matéria-prima e à alta no preço do fertilizante, e a Unigel teve lucro. Mas, em 2023, o quadro mudou, a empresa passou a ter prejuízo e parou as fábricas.
Entraram em campo, então, os contatos no governo Lula 3.0, e em 29 de dezembro de 2023 as duas empresas fecharam um acordo sui generis. Por ele, a petroleira fornece gás à Unigel e recebe em pagamento o fertilizante para vender no mercado. Só que os preços do gás estão em alta e os do fertilizante em queda, o que fez os técnicos do Tribunal de Contas da União (TCU) calcularem que a Petrobras terá prejuízo de R$ 487 milhões se levar o negócio adiante.
A diretoria justificou o contrato afirmando que o prejuízo em financiar a Unigel é menor que o de fechar definitivamente as unidades. A diferença, que seria de R$ 100 milhões, corresponde ao custo que a Petrobras teria caso seus funcionários fizessem uma greve em protesto contra a demissão dos funcionários da Unigel. O ministro do TCU Benjamin Zymler, relator do caso, está até agora sem entender como o fechamento de uma empresa privada com 255 funcionários poderia fazer parar toda a Petrobras — algo que não ocorreu nem quando a própria petroleira parou essas mesmas fábricas.
Depois que o TCU divulgou seu relatório, chegaram ao canal de denúncias da Petrobras alertas relatando pressões sobre técnicos para validar o contrato. Um deles dizia que funcionários do setor de recursos humanos tinham sido levados a endossar o cálculo do risco de greve para justificar o acordo. Iniciou-se, então, uma auditoria interna que coletou e-mails, apreendeu celulares e interrogou vários executivos. Ouvidos oficialmente, os empregados em questão negaram ter sido coagidos, e a auditoria concluiu que nada demais tinha ocorrido.
Mas a briga entre os conselheiros que são contra o negócio e a diretoria da Petrobras continua, e até agora não se sabe que fim levará o tal contrato, pendente de aprovação.
Perto dos R$ 43,9 bilhões de dividendos extras ou dos R$ 500 bilhões em investimentos previstos pela Petrobras para os próximos cinco anos, o dinheiro da Unigel é troco.
A questão é que, da mesma forma que a queda na Bolsa não foi provocada apenas pela retenção do dividendo extra, e sim pelo temor de uma volta ao intervencionismo do passado, o caso da Unigel também não preocupa apenas por causa do valor, e sim pelo que traz de volta. Diz a sabedoria popular que nenhum incêndio começa grande. E, para quem já foi todo chamuscado, qualquer faísca já provoca calafrios.
Fonte: O GLOBO
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