Prioridades definidas pelo governo brasileiro mostram que o país quer assumir protagonismo no enfrentamento das grandes questões mundiais

O lema da presidência brasileira do G20, “Construindo um mundo justo e um planeta sustentável”, dá a medida da ambição das prioridades que o governo definiu para direcionar as discussões e o protagonismo que o país quer assumir no enfrentamento das grandes questões globais.

A ideia é que, a despeito da tumultuada geopolítica internacional, as 19 maiores economias do mundo, União Europeia (UE) e União Africana (UA), concordem que não há como fugir desta diretriz e deixem isso claro em uma declaração conjunta, onde confirmem que vão agir e como o farão.

Afinal, é consenso que é preciso acabar com fome e a pobreza, combater a mudança do clima e promover a transição energética, e fazer funcionar de maneira equilibrada os organismos internacionais. Pelo menos é no que aposta o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas quem vai determinar a distância entre expectativas e resultado final é a realidade.

— Cabe a nós ser ambiciosos, seria ridículo se não fossemos. Era preciso propor agenda que, diante dos conflitos, fosse minimamente consensual — disse um negociador.

Veterano entre os frequentadores do G20, Lula sabe que não se trata de plataforma para grandes saltos. Mas também sabe que é vitrine importante para o Brasil e sua política externa, além de atualmente um dos principais foros para o debate global. Por isso quer resultados concretos. 

E, para o governo, isso significa, por exemplo, ao final de um ano à frente da presidência do grupo — a ser passada para a África do Sul após a cúpula de líderes no Rio nos dias 18 e 19 de novembro — mostrar poder de convocatória e capacidade de mobilizar recursos novos e já existentes em torno dessas causas.

Países-membros do G20 — Foto: Editoria de Arte / O Globo

Aliança contra a fome

Uma delas é a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, a ser constituída até julho. De lá até novembro, quando será lançada oficialmente, o Brasil tem o desafio de trazer parceiros de fora do G20. Ali, há formas de adesão para nações de todos tamanhos. As mais ricas entram como doadoras, somando-se aos orçamentos de organismos internacionais e fundos já existentes para patrocinar políticas sociais em países de baixa renda.

Nações médias, como o Brasil, entram com conhecimento e cooperação técnica (o que também custa dinheiro). As políticas sairão de um cardápio de experiências de sucesso, a ser anunciado com a Aliança. Os benefícios não são só financiamento novo. Podem ser perdão de parte das dívidas bilionárias. As condicionalidades devem ser brandas. Nada de leoninas exigências fiscais.

Em uma segunda frente, o governo quer mecanismos financeiros alternativos e complementares para a transição energética e o combate à mudança do clima. Uma novidade do G20 é fazer que a regulação financeira de bancos centrais direcione recursos do mercado financeiro para as iniciativas apropriadas e sustentáveis. O tema amplia o que vem sendo tratado no âmbito da COP. Seu desenho já seria grande vitória. Um novo cálculo para o tamanho do desafio financeiro a se enfrentar será anunciado na COP29, em Baku, capital do Azerbaijão, na mesma semana da cúpula do G20 no Rio.

A essas duas prioridades soma-se a da governança global. O Brasil quer fazer muito barulho em torno da necessidade de reformas das instituições internacionais multilaterais e considera um grande ganho de sua presidência a inédita “chamada para ação” que fará na primeira reunião da história de países do G20 e convidados de fora do clube às margens da Assembleia da ONU em setembro.

— Estamos falando de uma economia diferente. A redistribuição de recursos e poderes precisa ser espelhada no mundo contemporâneo — diz o secretário de temas econômicos do Itamaraty, embaixador Mauricio Lyrio, o sherpa brasileiro nas negociações.

Uma declaração final também será encarada como vitória, ainda que menos contundente do que desejaria o presidente. Seu grau de ousadia medirá a capacidade do Brasil de evitar que a geopolítica contamine o consenso. O palavreado final tem sido tarefa árdua. O documento final de 30 páginas quase não saiu nas duas presidências anteriores, na Índia (2023) e Indonésia (2022), justamente pela situação geopolítica, agora tida como bem mais grave.

Em 2023, foram registrados 123 conflitos (patamar próximo aos tempos da Guerra Fria no início da década de 1990). Eles não são os únicos que podem tirar brilho da declaração. O calendário internacional pode jogar contra os bons frutos do G20 ou criar saias justas. A eleição presidencial americana é grande ponto de interrogação. Se Donald Trump for eleito, são fortes as chances de a cadeira americana fique vazia na cúpula do Rio. A expectativa é que o republicano não venha, se vencer. Nem o democrata Joe Biden, se perder.

A cúpula do Brics (hoje em formato ampliado e mais sinocêntrico), cuja presidência está nas mãos da Rússia, é outro ponto de desgaste. Acredita-se que o encontro de líderes do grupo, em Kazan um mês antes daquele do G20, possa desgastar Lula pela proximidade com Vladimir Putin. A própria presença do russo no G20, se confirmada, pode provocar outras ausências.

Conter expectativas

Entre arroubos de entusiasmo e ceticismo, especialistas preferem calibrar as expectativas.

— É outra gramática. As nuances indicam o que será permitido e como os Estados vão se organizar. É uma espécie de bula a ser lida com atenção. Cada milímetro de concertação tem muito mais valor hoje do que nos anos 1990 ou 2000. O grau de tensão é muito grande — afirma Michelle Ratton, professora de direito internacional da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo.

Para a professora, os “Gs" têm sido mais relevantes para negociações do que os organismos formais, que perderam espaço para discussão e têm procedimentos engessados.

Entendimentos dentro do G20 estão longe de ser triviais. Desde que ganhou fôlego e importância para conter os efeitos da crise financeira internacional de 2008, seu ponto alto, nunca mais teria sido capaz de gerar resposta de impacto uníssona e inequívoca.

Para o professor Eduardo Violla, o grupo perdeu funcionalidade desde meados de 2010, o que se aprofundou mais recentemente com uma nova corrida armamentista mundo afora. Isso, diz, tira o foco da necessidade de se aplicar recursos em outras prioridades. A nova definição de segurança energética, após a invasão da Ucrânia, é outro complicador, ao permitir que nações aumentem investimentos em combustíveis fósseis, sobretudo na Europa. Ele vê pontos para avanços, sobretudo no campo da sustentabilidade, mas “zero” em mudanças nos organismos internacionais.

— Vejo avanços positivos, mas muito limitados — diz.

Bem mais cético, o ex-embaixador Rubens Ricupero afirma que é preciso conter as expectativas. Por mais que os temas sejam de reconhecida importância global, ele destaca que os consensos são ilusórios.

— É sempre mais fácil ter consenso sobre os fins do que sobre os meios — diz o ex-ministro da Fazenda e ex-secretário do UNCTAD. — A OMC, quando foi criada, era uma máquina de produzir decisões, nos primeiros anos teve decisões importantes. Só que veio a conjuntura, que dura desde 2015. Está tudo parado. O G20 é mais grave, pois pela própria natureza não é instituição que produza resultados. Fracassou miseravelmente durante a pandemia.

A portas fechadas as negociações até têm corrido bem, com avanços inegáveis em boa parte dos 15 grupos de trabalho, duas forças-tarefas e uma iniciativa, como foram divididos os temas. Mas toda vez que se cogita a ideia do comunicado comum para explicar os encontros da porta para fora, o fantasma da geopolítica reaparece. Foi assim na reunião de ministros de Finanças em São Paulo, em março. Isso explica a estratégia brasileira de evitar as “declarações conjuntas” antes da cúpula. Há contaminação da geopolítica até em reuniões sobre saúde, admitem negociadores.


Fonte: O GLOBO