Volta para a cadeia foi determinada menos de 24 horas depois da divulgação, pela revista 'Veja', de áudios em que o tenente-coronel critica a conduta da PF e de Moraes em seu acordo de delação

Seis meses após deixar a prisão, o tenente-coronel Mauro Cid voltou a ser detido ontem por determinação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). O magistrado entendeu que o ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro descumpriu medidas cautelares impostas a ele como condição para ficar em liberdade e agiu para obstruir a Justiça, atrapalhando investigações sobre as quais se comprometeu a colaborar.

A Corte também informou avaliar se ele violou acordo de delação premiada, o que poderá resultar em sua rescisão. Para a Polícia Federal, caso isso ocorra, não resultaria em prejuízo às apurações em curso, uma vez que elas se sustentam em material apreendido nos computadores e celulares de Cid e não propriamente no que ele relatou.

A nova prisão foi determinada menos de 24 horas depois da divulgação, pela revista “Veja”, de áudios em que Cid critica a conduta da Polícia Federal e de Moraes em seu acordo de delação premiada, firmado em setembro do ano passado. Nas gravações, o militar afirma ter sido pressionado a falar sobre fatos que, segundo ele, “não teriam acontecido” ou dos quais “não teria conhecimento”.

Recuo sobre coação

Cid foi intimado a esclarecer as declarações em audiência na tarde de ontem no STF. Diante de um juiz auxiliar de Moraes, recuou do que havia dito nos áudios, reiterou o teor da sua delação premiada e negou ter sido coagido a falar. “Nunca houve induzimento às respostas. Nenhum membro da PF o coagiu a falar algo que não teria acontecido”, disse o militar, segundo transcrição de seu depoimento, que durou cerca de 30 minutos.

Questionado pelo juiz com quem falava na conversa que foi gravada, disse não se lembrar. “É um desabafo, quer chutar a porta e acaba falando besteira. Genérico, todo mundo, acaba dizendo coisas que não eram para ser ditas”, afirmou, conforme o termo da audiência. Uma das medidas impostas por Moraes era a proibição de o militar manter contato com outros investigados. No depoimento, Cid nega ter feito isso.

O tenente-coronel saiu da audiência no STF escoltado pela PF e com a possibilidade de perder futuros benefícios que poderia receber por causa da colaboração, como uma eventual redução de pena. Na avaliação de investigadores, os áudios revelam que Cid falou com terceiros sobre a delação, ferindo, portanto, o sigilo do acordo. Também veem embaraço às investigações com as críticas feitas — o que configuraria o crime de obstrução de Justiça.

Mesmo que o acordo de delação premiada seja desfeito, o que ainda será avaliado pela PF e pelo STF, investigadores afirmam não ver prejuízo às apurações em curso, como a que trata sobre suspeitas de tentativa de golpe de Estado, de fraudes em cartões de vacinação e de desvio de joias da Presidência da República.

A avaliação dos agentes é que boa parte das apurações se sustenta no material apreendido. Essas provas continuarão válidas em caso de anulação da delação por descumprimento dos termos por parte do tenente-coronel.




Quando Cid fechou a delação, em setembro, os inquéritos que tratavam da fraude no cartão de vacinação de Bolsonaro e da venda de joias do acervo presidencial no exterior já estavam em estágio bem avançado. O primeiro deles foi concluído pela PF nesta semana e resultou no indiciamento do tenente-coronel, de Bolsonaro e outras 15 pessoas por falsificação de documentos e associação criminosa.

Em sua colaboração, Cid contribuiu em especial na investigação sobre o suposto roteiro do golpe tramado após a derrota eleitoral de Bolsonaro. O ponto principal da delação do ex-ajudante de ordens é a exposição das reuniões do ex-presidente com auxiliares e com os chefes das Forças Armadas na tentativa de formular um decreto que previa estado de sítio e, em algumas de suas versões, até mesmo a prisão de ministros do STF.

Neste caso, no entanto, suas revelações foram corroboradas pelos depoimentos dos ex-comandantes do Exército, general Marco Antonio Freire Gomes, e da Aeronáutica, brigadeiro Carlos Baptista Júnior, que falaram na condição de testemunhas. O general era o superior de Cid na Força e participou das reuniões que trataram sobre a minuta golpista.

As declarações de Cid nas gravações se deram no contexto de avanço das investigações, com a PF descobrindo detalhes da suposta tentativa de golpe. Na conversa com o interlocutor, o tenente-coronel se queixa da própria situação como delator e chega a reclamar do ex-presidente.

— Ninguém perdeu carreira, ninguém perdeu vida financeira como eu perdi. Todo mundo já era quatro estrelas, já tinha atingido o topo, né? O presidente (Bolsonaro) teve Pix de milhões, ficou milionário, né? — diz Cid em um dos áudios.




Ao ser questionado sobre a declaração na audiência de ontem, Cid relata enfrentar problemas pessoais e financeiros. “A carreira está acabando. Os amigos o tratam como leproso”, relata. “Acredita que as pessoas deviam o estar apoaindo e dando sustentação”, diz, em outro trecho do depoimento.

A defesa do militar, em nota divulgada na quinta-feira, após a revelação das gravações, reconhece como de Cid os áudios, mas afirma que “não passam de um desabafo” e não colocam “em xeque a independência, a funcionalidade e a honestidade da Polícia Federal, da procuradoria-Geral da República ou do Supremo Tribunal Federal”.

O diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, disse à colunista Miriam Leitão, do GLOBO, que fez uma representação contra Cid no STF por ele ter dito ter sido forçado a falar o que está dizendo na delação.

‘Família está surpresa’

Cid chegou a passar mal ontem no momento em que soube que voltaria para a prisão. Socorristas do Supremo foram acionados para acudi-lo na sala de audiência. O militar deixou a Corte direto para o Instituto Nacional de Criminalística (INC), na Superintendência da Polícia Federal no Distrito Federal, de onde foi encaminhado para o batalhão do Exército onde ficará detido.

O pai do tenente-coronel, o general da reserva do Exército Mauro Lourena Cid, revelou surpresa com o retorno do filho para a prisão.

— A família está arrasada com tudo isso, porque sabemos como foi difícil o período em que ele esteve preso — lamentou o general, em entrevista ao GLOBO.

Além da prisão, a PF realizou ontem nova operação de busca e apreensão na casa do ex-ajudante de ordens. Do endereço, foram levados um computador, o celular do ex-ajudante de ordens, o telefone de sua esposa, Gabriela Cid, e documentos.


Fonte: O GLOBO