Annelle Sheline deixou o cargo em março, após divergências com seus superiores sobre a política americana para o conflito
A ex-integrante do Departamento de Estado que deixou o cargo após divergências sobre as políticas dos EUA para a guerra em Gaza afirmou, em seminário nesta quarta-feira, que o governo de Joe Biden está “quebrando várias leis” ao manter os envios de armas para Israel. Annelle Shaline disse ter alertado seus superiores na época, e que mesmo que alguns tenham concordado com suas posições, foi voto vencido.
No evento, promovido pela ONG Just Vision e apresentado pela cineasta brasileira Julia Bacha, Annelle Shaline citou leis em vigor nos Estados Unidos que impedem a transferência de equipamentos militares a países que violem os direitos humanos, como as Leis Leahy, implementadas pela primeira vez em 1997 — segundo fontes do Departamento de Estado e do Pentágono, a legislação impediu exportações para uma dezena de países no passado, como Líbano, México, Colômbia e Bolívia.
Contudo, diante do volume de vendas de armas aos israelenses e, especialmente, das questões estratégicas envolvidas, ela aponta que essas legislações por vezes são descumpridas pelas autoridades americanas, e que não há qualquer tipo de punição aos responsáveis.
— Se houver uma designação desse tipo a Israel (de país violador dos direitos humanos), seria como a quebra de uma represa, porque há muitos casos de vendas [de armas] envolvendo violações do tipo — disse Shaline.
Nas últimas semanas, com o agravamento da situação humanitária em Gaza, com a iminência de uma operação terrestre israelense em Rafah, onde estão abrigadas centenas de milhares de pessoas, o governo Biden tem apertado o tom nas críticas a Israel. Além de exigir um maior acesso de ajuda humanitária ao território, o presidente americano chegou a ameaçar com uma mudança na política do país para Israel, que garante, pelo menos até 2026, uma ajuda militar anual de US$ 3,3 bilhões (R$ 17,26 bilhões).
Shaline trabalhava no Escritório para a Democracia, Direitos Humanos e Trabalho do Departamento de Estado, alocada no Oriente Médio, e afirma ter expressado a superiores suas objeções aos envios recorrentes de armas aos israelenses, mesmo diante de indícios de violações dos direitos humanos. Ela afirma que alguns deles chegaram a expressar visões semelhantes, mas se disseram incapazes de promover mudanças. Diante disso, ela não viu outra opção que não fosse entregar o cargo, em março, e desde então tem sido uma voz ativa contra a guerra e contra o apoio quase irrestrito a Israel.
Depois do ataque iraniano a Israel, no sábado, repelido com a ajuda de aliados como os próprios EUA, deputados americanos prometeram aprovar, até o final da semana, um pacote de ajuda a Israel, que pode destinar até US$ 14 bilhões (R$ 73,26 bilhões) em equipamentos militares ao país. Ainda não está claro qual texto irá a plenário, tampouco o que estará previsto nele, como, por exemplo, um outro pacote, de US$ 60 bilhões (R$ 313,98 bilhões), destinado à Ucrânia.
Os planos, defendidos por Biden, encontravam até agora forte resistência de parlamentares trumpistas e, no caso de Israel, de democratas da ala progressista do partido. Na temporada de primárias, que antecede a eleição presidencial de novembro, muitos eleitores de Biden demonstraram insatisfação com a forma como a Casa Branca encara a guerra em Gaza, algo que Shaline aponta como um fator de peso para o governo nos próximos meses.
Ao falar da visão israelense sobre os debates em Washington, Meron Rapoport, editor do site Local Call, afirma que a simples ameaça de um corte da ajuda americana causa calafrios dentro do país.
— Tivemos um precedente no governo de George H.W. Bush, nos anos 1990, quando ele ameaçou cortar a ajuda a Israel se o pais não concordasse em se sentar em uma conferência com a OLP (Organização para Libertação da Palestina, liderada por Yasser Arafat). O governo de [Ytzhak] Shamir [ex-premier de Israel] aceitou — disse Rapoport. — Uma crise real com o governo dos EUA é algo muito grande, mais até do que um embargo de armas, uma crise diplomática com os americanos é algo que incomoda os israelenses.
'Lavanda'
O painel discutiu ainda o crescente uso da tecnologia na guerra no enclave palestino, a começar por um sistema baseado em Inteligência Artificial (IA) que identifica possíveis “alvos” ligados ao grupo terrorista Hamas em Gaza para posteriores ataques.
A existência do “Lavanda” foi revelada pelos sites +972 e Local Call, no começo do mês, e levantou questões importantes sobre a forma como Israel determina seus ataques, sobre o grau de confiança na IA e sobre a noção de “baixas aceitáveis”: segundo a investigação, havia um número de mortes toleradas de civis em ataques contra acusados de ligação com o Hamas, que poderia chegar a 100 no caso de oficiais de alto escalão.
— Existe muita pressão da elite israelense para ver o massacre ir adiante. Acredito que o Lavanda tenha a ver com isso. Com pessoas de baixo escalão apertando alguns botões e dizendo quem são os alvos, e também com comandantes dizendo para continuar — disse Amjad Iraqi, editor do +972.
Segundo a reportagem, as decisões sobre quem será atacado são feitas a partir de uma análise de dados de inteligência, fornecidos por diversos serviços e agências israelenses. Depois, cabe a um comandante dar a ordem final, mas os jornalistas apontaram que, ao contrário de guerras passadas, quando o aval dependia de uma avaliação militar e até jurídica, agora ele ocorre em minutos.
Para Iraqi, apesar de Netanyahu ser a face mais visível do governo israelense, não é possível concentrar toda a responsabilidade sobre a guerra e abusos no premier. Como aponta o jornalista, suas decisões contaram com o aval de outros políticos, incluindo alguns de seus alegados rivais.
— Não é apenas sobre uma pessoa, mas sim sobre uma coalizão. Isso inclui Benny Gantz, que entrou no Gabinete [de guerra] como um membro de oposição. Em 2014, ele era o chefe das Forças Armadas durante a guerra [em Gaza], e nós estamos vendo os mesmos objetivos e os mesmos modelos — afirmou.
Fonte: O GLOBO
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