Desde a redemocratização da Argentina, em 1983, não se estabelecia uma agenda de tamanha intensidade em matéria de segurança, defesa e inteligência entre os dois países

Desde que Javier Milei assumiu a Presidência da Argentina, em 10 de dezembro de 2023, seu chefe de Gabinete, Nicolás Posse, manteve duas reuniões com o diretor da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA), William Burns: uma na sede, em Langley, no estado da Virgínia, e outra em Buenos Aires. Desde a redemocratização da Argentina, em 1983, não se estabelecia uma agenda de tamanha intensidade em matéria de segurança, defesa e inteligência entre os dois países. Esse é um dos aspectos mais importantes do pilar essencial da política externa e ideologizada de Milei: o alinhamento com os EUA.

Retorno aos anos 90

O presidente argentino trouxe de volta o espírito da política externa do governo do peronista de direita Carlos Menem (1989-1999), que, em palavras do falecido ex-chanceler Guido Di Tella, manteve “relações carnais” com os EUA. Para Milei, os governos de Menem foram os melhores da História do país e, em matéria de política exterior, o presidente argentino segue seus passos.

— Como no governo Menem, a opção hoje é pelo Ocidente, com forte alinhamento com os EUA. Na minha opinião, essa posição deveria ser revisada, porque o mundo mudou — afirma o ex-embaixador da Argentina nos EUA e na China Diego Guelar.

O chefe de Estado argentino, diferentemente do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, acredita na existência de um mundo bipolar, no qual a principal disputa de poder e influência global é entre os EUA e a China. Nesse embate, a Argentina de Milei fez uma opção clara, que permeia as principais decisões de seu Ministério das Relações Exteriores, comandado pela economista Diana Mondino.

Semana passada, Mondino fez uma longa viagem ao exterior, que incluiu uma escala na China. A chanceler de Milei, cujo principal foco é a abertura da economia e o aumento do comércio internacional, busca aparar arestas em países com os quais Milei não tem — e não esconde isso — interesse em se relacionar, entre eles o Brasil. Em uma recente visita a Brasília e São Paulo, a ministra disse a interlocutores do governo Lula e empresários brasileiros que as falas de Milei não devem impactar na relação, e que o comércio entre os dois países deve ser revitalizado.

Os números, porém, não são positivos. No primeiro trimestre de 2024, as exportações brasileiras para a Argentina representaram apenas 3,6% do total das vendas do Brasil ao mundo, acentuando uma perda relativa de importância do país vizinho para o comércio exterior brasileiro nos últimos dez anos. No mesmo período de 2014, o percentual foi de 6,5%.

Aparando arestas

Embora Mondino esteja tentando dar um giro pragmático na política externa de seu país, o impacto das posições de Milei durante a campanha eleitoral e após assumir o poder é difícil de reverter. Antes de ser eleito presidente, o líder de ultradireita afirmou que não faria “negócios com a China, nem com nenhum comunista”. Em março passado, a China deixou de ser o segundo parceiro comercial da Argentina, perdendo espaço para a União Europeia.

Fontes do governo argentino admitem que as relações com a China estão tensas, e a viagem de Mondino não mudou esse cenário. A aproximação com os EUA de Biden e a clara opção eleitoral de Milei pelo ex-presidente Donald Trump têm consequências. A isso, somaram-se outros elementos, entre eles uma aproximação da chanceler e de outros aliados de Milei com o governo de Taiwan.

Nas últimas semanas, a Chancelaria argentina e o Ministério da Economia do país estiveram em negociações frenéticas com a China para evitar o cancelamento de um swap cambial de US$ 18 bilhões (R$ 90 bilhões) e de um crédito de US$ 5 bilhões (R$ 25 bilhões) concedido pelo país ao governo do peronista Alberto Fernández. Paralelamente, em entrevista à agência Bloomberg, o argentino afirmou que “se as pessoas quiserem fazer negócios com a China, podem fazer isso”.

Ainda não há definições, e algumas declarações da própria Mondino durante a viagem causaram mal-estar no governo chinês.

— O kirchnerismo via os EUA num processo de decadência, e Milei tem uma visão diametralmente oposta. Para o presidente, os EUA nem são fracos nem estão em crise — aponta o analista internacional Fabián Calle.

Segundo ele, “nunca se viram tantos funcionários americanos passando por Buenos Aires como agora”.

— Em matéria de segurança e inteligência, a agenda é ampla. Existe preocupação pela ampliação da presença chinesa e de grupos terroristas como o Hezbollah, na fronteira entre Argentina e Bolívia — diz Calle, referindo-se ao grupo xiita libanês considerado terrorista por alguns países.

A ministra da Segurança argentina, Patricia Bullrich, que visitou Washington em março passado, tem falado bastante sobre a preocupação que existe pela suposta atuação de grupos como o Hezbollah em território boliviano.

— Tivemos a visita da general Laura Richardson, à frente do Comando Sul, e durante o encontro que ela manteve com o presidente em Ushuaia falou-se sobre a construção de porto na Terra do Fogo, um antigo projeto da Marinha argentina que poderá ser usado por países amigos, entre eles os EUA — acrescenta o analista.

O projeto do porto na Terra do Fogo foi celebrado pela general Richardson, diante dos temores que existiram nos governos kirchneristas de que algo similar tivesse sido realizado em parceria com a China.

Caças e Otan

A Argentina espera em breve, como o Brasil, a chegada do porta-aviões de propulsão nuclear George Washington. A cooperação bilateral em matéria de defesa também incluiu a assinatura de uma carta de intenções para comprar 24 caças americanos F-16 Fighting Falcon usados pela Dinamarca, com prévia autorização e ajuda financeira dos EUA, que ignorou o veto imposto pelo Reino Unido após a Guerra das Malvinas para que a Argentina possa realizar este tipo de operações. A última vez que a Argentina fez algo semelhante foi em 1993, assegura Calle, com restrições.

— Concretizamos a aquisição aeronáutica militar mais importante desde 1983 — declarou o ministro da Defesa, Luis Petri.

A agenda externa de Milei inclui outras iniciativas que lembram os dois governos de Menem, período no qual a Argentina apoiou os EUA em momentos decisivos, como a guerra contra o Iraque de Saddam Hussein. O presidente expressou recentemente o desejo de que a Argentina se torne aliada global da Organização do Tratado do Atlântico Norte, a aliança militar liderada pelos EUA.

— Queremos reconciliar nossas Forças Armadas com o mundo ocidental, democrático e livre — declarou Milei, em clara alfinetada à China.


Fonte: O GLOBO