Democrata precisa repetir desempenho seguro no discurso do Estado da União, aponta especialista. Republicanos temem que agressividade exagerada de ex-presidente afaste eleitores independentes

A primeira cena do terceiro ato da corrida à Casa Branca acontece hoje, a partir das 22h (horário de Brasília), no debate entre o presidente Joe Biden e seu antecessor, Donald Trump, na CNN. Os dois não se enfrentam há quatro anos, quando protagonizaram momentos memoráveis, como quando o democrata, seguidamente interrompido, reagiu com um “mas você não cala a boca nunca?”. 

Desta vez, ficarão separados, no estúdio em Atlanta, por distância acordada de 2,4 metros, sem plateia e com o microfone de um desligado quando o outro estiver com a palavra. Tratarão, por dois minutos, de tópicos definidos pelos moderadores, com réplicas e tréplicas de um minuto cada. Um segundo duelo acontecerá em setembro.

19% sem voto definido

A hora e meia de debate hoje é tratada pelas duas campanhas como a melhor oportunidade, até o momento, para convencer os 19% de possíveis eleitores (nos EUA, o voto não é obrigatório) indecisos, em sua maioria críticos dos dois, como mostram as pesquisas. Em uma das mais acirradas disputas à Presidência dos EUA, os candidatos estão empatados, com Trump ligeiramente à frente nos estados decisivos. E os riscos hoje são, diz o cientista político Clayton Allen, do Eurasia Group, maiores para Biden.

— Ele vence hoje se repetir a performance do discurso do Estado da União, em março, quando se mostrou decidido e capaz de se aprofundar em variados temas com poucos erros factuais. Já para Trump, o sarrafo é menor. Ele precisa apenas não fazer ou falar algo que cause indignação nos eleitores— diz Allen.

As diferenças entre os dois lados se registraram já na preparação para o debate. Biden repetiu a estratégia de 2020, em longos ensaios com a cúpula de sua campanha, agora na bucólica residência oficial de Camp David, em Maryland. Seu advogado pessoal repetiu o papel do adversário, e abordou temas delicados, como a condenação do filho do presidente, Hunter Biden, por mentir sobre dependência química ao comprar uma arma. E, claro, as supostas dificuldades cognitivas do presidente, que completará 82 anos duas semanas após as eleições.

— Algo inédito, a idade avançada dos candidatos permeará o debate, estará na cabeça de todos em cada resposta. Eles responderão com rapidez e segurança? Oferecerão números e nomes corretos? As conexões têm nexo? — aponta Allen.

O uso do plural é proposital. Embora com menos atenção da mídia, Trump, que acaba de completar 78 anos, também fez os americanos coçarem a cabeça, encafifados, ao trocar o nome do médico que justamente teria lhe garantido estar em ótimas condições cognitivas. Exemplo que Biden deverá usar hoje se atacado pelo adversário no quesito caduquice.

Bem ao seu estilo, Trump apostou no improviso para o debate. Recusou ensaios formais e preferiu tratar do tema em comícios. Em um deles, no último sábado, na Pensilvânia, fez chacota com quem “precisa se isolar numa cabana para estudar como debater comigo”. E pisou no acelerador: “Na verdade, ele estava era dormindo para parecer menos fora de forma em Atlanta”. Até “injeção de cocaína na bunda” o ex-presidente sugeriu que Biden usa para ficar de pé.

No QG republicano, aumentaram os pedidos para o líder da oposição lembrar as diferenças entre comício e debate. Que é possível pontuar “ter mais energia que Biden” sem ser agressivo demais, mesmo quando o adversário afirmar, como esperado, sobretudo em evento na Geórgia, ser esta uma disputa entre a democracia e um candidato a ditador. Até hoje Trump não reconhece a vitória de Biden nas urnas no estado em 2020. Acusa, sem provas, que houve fraude e responde na Justiça por tentar reverter o resultado ilegalmente.

Conselhos de Hillary

No lado democrata, não há consenso sobre se o presidente deve tratar hoje da condenação de Trump por ocultar pagamento de US$ 130 mil para comprar o silêncio da ex-atriz pornô Stormy Daniels, com quem teria tido um caso extraconjugal, na eleição de 2016, quando derrotou a democrata Hillary Clinton.

Em artigo no New York Times na terça-feira, a ex-secretária de Estado lembrou ser a única pessoa a ter debatido com os dois (Trump em 2016 e Biden nas primárias de 2008). A democrata escreve que é “perda de tempo” tentar discutir ideias com um “bully” com repertório de mentiras e insultos. E que a única maneira de derrotá-lo hoje é Biden ser tão direto e contundente como foi ao enfrentar congressistas republicanos no mesmo discurso do Estado da União mencionado por Allen.

O especialista do Eurasia Group prevê que os temas centrais hoje serão economia, imigração e aborto. Biden deve defender a recuperação pós-Covid da economia americana, com recorde de postos de emprego. E acusar o adversário de querer beneficiar ainda mais os ricos com novos cortes de impostos. Trump, por sua vez, pedirá que os americanos lembrem se tinham mais dinheiro no bolso há quatro anos, já sabendo a resposta.

América Latina de fora

O republicano defenderá que cada estado defina suas regras sobre direito reprodutivo, enquanto o democrata lembrará que o próximo presidente deve nomear dois juízes da Suprema Corte, cruciais para os direitos das mulheres.

Certeza mesmo é a América Latina como coadjuvante da noite. Enquanto as discussões sobre política externa devem girar em torno da China e das guerras na Europa e no Oriente Médio, os vizinhos ao sul do Rio Grande devem aparecer só quando Biden e Trump disputarem quem será mais efetivo na política de imigração.


Fonte: O GLOBO