Apesar do discurso de normalidade, desgaste da revelação que pré-candidato a prefeito gravou então presidente pôde ser visto nas sutilezas

O ato do PL que reuniu Jair Bolsonaro e o postulante do partido à Prefeitura do Rio, Alexandre Ramagem, era tido até a véspera como uma prova de fogo para a relação entre o ex-presidente e seu apadrinhado na corrida municipal, depois que a revelação de que Ramagem havia gravado Bolsonaro sem seu consentimento durante uma reunião no Palácio do Planalto estremecer sua pré-candidatura.

Em que pese terem ocorrido falas de apoio e solidariedade ao deputado e ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) no comício pré-eleitoral no bairro da Tijuca, na Zona Norte do Rio, quem conhece a dinâmica dos atos bolsonaristas percebeu que foi no mínimo tímido o desagravo a Ramagem a pouco menos de três meses do primeiro turno da eleição.

Mas, protagonista natural do evento na condição de ex-presidente e cabo eleitoral do PL, Bolsonaro só citou Ramagem 11 minutos após o início do seu discurso, que durou pouco mais de 15 minutos. Preferiu destacar a narrativa de perseguição política, defender seu legado na presidência e evocar a narrativa infundada de fraude nas eleições de 2022, como contamos no blog.

A agenda local ganhou relevância política pelo fato de a gravação secreta de Ramagem em uma reunião que tratava sobre as investigações das “rachadinhas” em seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) ter sido publicizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) há apenas três dias.

Oficialmente, o discurso no partido é de que Ramagem gravou o encontro para proteger Bolsonaro de eventuais vazamentos. Como revelou a colunista Bela Megale, o deputado e ex-diretor da Abin declarou à Polícia Federal ter registrado a reunião a pedido do então presidente – embora, nos bastidores, o ex-chefe do Executivo tenha se mostrado surpreso e irritado com o episódio.

Em referência às investigações que pesam contra Ramagem no inquérito da Abin paralela, Bolsonaro destacou que o aliado “já começa a pagar um preço alto sua ousadia de querer, pensar, sonhar em administrar uma cidade com respeito, honradez e orgulho” e lembrou que o conheceu na transição de 2018, quando trabalhou na segurança do então presidente eleito.

Para quem esperava que Jair Bolsonaro mergulhasse de cabeça na defesa dos atributos de Ramagem para viabilizá-lo na corrida contra Eduardo Paes, que terá o apoio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de parte da esquerda, o ato na Praça Saens Peña foi uma oportunidade perdida – ainda que, pela lei, ele não possa pedir votos para o aliado. O ato também levanta dúvidas sobre as cicatrizes que a gravação secreta deixará na candidatura do PL.

Alguns oradores da nominata do partido até se esqueceram de mencionar o pré-candidato a prefeito, e por vezes Ramagem pareceu deslocado no alto do trio elétrico e, em alguns momentos, sequer estava ao lado de Bolsonaro.

Mesmo que os discursos tenham se voltado para a própria militância, que compareceu vestindo verde e amarelo na manhã de uma quinta-feira sob o mote de “eu vim de graça”, ninguém entende melhor do que a direita bolsonarista o impacto de recortes de discursos viralizados nas redes sociais.

O comedimento chama atenção porque a associação com Bolsonaro e a intensificação de agendas públicas é tida como crucial pelo PL do Rio para o crescimento do deputado nas pesquisas. A leitura é que Ramagem ainda é desconhecido por boa parte da população e parte dos eleitores migrará para sua candidatura após identificar o apadrinhamento pelo ex-presidente.

Como publicamos no blog, o presidente nacional do PL, Valdemar Costa Neto, tem dito em rodas de conversa em Brasília que Bolsonaro entrará “firme” na campanha para evitar um “vexame” no seu berço eleitoral, onde iniciou a carreira política em 1988 – ele próprio um ex-morador da Tijuca, como frisou.

Não se pode descartar que o ex-presidente multiplique esforços por Ramagem nas próximas semanas, após a repercussão do episódio da gravação perder força. Mas o intervalo de tempo até as eleições de outubro é curto, e o ex-diretor da Abin precisa cruzar uma avenida inteira para se viabilizar.

Se as eleições municipais fossem nesta sexta-feira, levando em conta o cenário divulgado pelo Datafolha no último dia 5, Paes seria eleito com larga margem já no primeiro turno e Ramagem terminaria atrás do PSOL, partido que provoca calafrios em bolsonaristas. É pouco crível que o cenário tenha melhorado desde então para o pré-candidato do PL, às voltas com as investigações da Polícia Federal sobre o esquema de monitoramento de adversários do governo Jair Bolsonaro quando ele era diretor da Abin.

Além da associação com o Bolsonaro, uma das principais apostas do bolsonarismo para emplacar Ramagem é o discurso da segurança pública – que, embora seja atribuição do governo estadual administrado pelo PL, é um tema que encontra apelo entre a população carioca.

Mas, para abraçar o tema a ponto de roubar eleitores de Paes, o pré-candidato precisa furar a bolha bolsonarista e alcançar quem não votou em Bolsonaro. Ironicamente, uma das músicas que embalou a militância que aguardava a chegada do ex-presidente ao evento, que poderia ser ouvida a centenas de metros de distância, chamava de “Zé Ruela” quem fez o “L iludido com o PT”.

Bolsonaro e Ramagem voltam nesta sexta-feira às ruas do Rio, dessa vez no calçadão de Campo Grande, bairro mais populoso da cidade e que recebeu investimentos pesados de Eduardo Paes de olho no eleitorado da região, que votou em peso no então candidato à reeleição contra Lula.

A energia empenhada pelo ex-presidente nos próximos meses elucidará se o episódio Abin terá reflexos definitivos na campanha de seu apadrinhado e definirá se, afinal, a eleição carioca terá um ou dois turnos.


Fonte: O GLOBO