Pactos firmados chegam a R$ 239,2 milhões em municípios afetados pelas enchentes

Empresários da área de saneamento, limpeza e coleta de lixo alvos em processos de desvio de dinheiro público conquistaram contratos que chegam a R$ 239,2 milhões em municípios do Rio Grande do Sul em meio à tragédia das enchentes. Os acordos foram feitos de forma mais célere por causa da decretação do estado de calamidade pública.

A empresa que ganhou os maiores contratos é a THV. Especializada em limpeza urbana e coleta de lixo, a companhia fechou 11 acordos que alcançam R$ 165,2 milhões com a prefeitura de Canoas, uma das cidades mais atingidas pelas inundações, que teve bairros inteiros submersos. Os contratos foram firmados em junho, vigoram até dezembro e preveem locação de maquinário (retroescavadeira e caminhão) e a atuação de uma equipe. Cinco firmas participaram da disputa. A THV levou 11 lotes, enquanto outra conseguiu dois que somaram R$ 31 milhões.

Meses antes, em dezembro do ano passado, a THV foi alvo de uma operação do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) que investigava os crimes de fraude em licitações, peculato, corrupção ativa e passiva e lavagem de dinheiro.

O esquema teria ocorrido em contratos de limpeza urbana da prefeitura de Pirassununga (SP). O prefeito da cidade e secretários municipais foram afastados do cargo, e o presidente da Câmara Municipal assumiu a gestão da cidade. Segundo apuração do MP-SP, a THV teria subornado agentes públicos do município para ser favorecida em contratos. Na época da operação, o órgão informou que parte dos repasses haviam sido feitos por meio de “triangulação financeira”, com conta bancária de parentes ou indicados pelos agentes.

Sócio da empresa, Thiago Narciso Rezende foi denunciado e o caso tramita no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). Em maio, a 10ª Vara de Direito Criminal autorizou o compartilhamento de todas as provas, incluindo as oriundas de interceptação telefônica e telemática, com o Ministério Público Federal (MPF), para que prossiga com as investigações. Isso porque, segundo o MP-SP, houve a identificação do uso de recursos federais na licitação com suspeita de fraude que gerou a contratação da empresa THV.

Uma das licitações apuradas pelo MP já era alvo de questionamento feito no âmbito de uma ação popular também em tramitação na Justiça de São Paulo que tem a empresa como ré. O processo apura a suspeita de superfaturamento de R$ 437,9 mil na construção de calçadas.

A Justiça determinou que a prefeitura não contrate outros serviços com base no pregão sob suspeita. O processo agora aguarda uma perícia por profissional habilitado para que verifique detalhadamente a qualidade do calçamento efetuado na praça e a estimativa do valor que deveria ter sido cobrado pela obra. Na ação, a THV alegou que a ação foi iniciada por um vereador de oposição ao então prefeito, agora afastado, com o objetivo de "criar um cenário fictício de ilegalidade para macular a imagem social" dos réus.

Procurados, o sócio e a empresa não se manifestaram. Em nota, a prefeitura de Canoas afirmou que os contratos foram precedidos de disputa de preço, por meio do processo de com dispensa eletrônica emergencial. A modalidade foi escolhida, segundo a gestão, tendo em vista que uma contratação com o tempo regular “ demoraria para trazer o resultado necessário em função da urgência”. O município afirma que havia 350 quilômetros de ruas com resíduos e que foram retirados mais de 350 mil toneladas de entulho. "Com a contratação de tempo regular, poderia levar meses para completar a retirada desse montante, o que levaria a uma outra calamidade, a de saúde pública, além de impossibilitar a retomada da dignidade e habitabilidade da população”, disse a prefeitura, acrescentando que consultou os tribunais de contas do Estado e da União sobre a "idoneidade da empresa e seus sócios majoritários".

Desvios na saúde

Outra empresa que firmou contratos milionários da ordem de R$ 74 milhões foi a Urban Serviços e Transportes. Sediada em Charqueadas (RS), a companhia fechou acordos emergenciais com a prefeitura de São Leopoldo para retirar lixo acumulado pelas enchentes e alugar retroescavadeiras e caminhões caçamba.

O dono da empresa, Marcos da Rosa Lopes, virou réu em fevereiro por integrar um suposto esquema de desvio de recursos públicos do sistema de Saúde de Canoas. Segundo o Ministério Público Federal, a empresa agia em parceria com um grupo empresarial contratado por R$ 996 milhões para administrar hospitais e unidades de pronto atendimento do município. O trabalho da Urban consistia em coletar, transportar e tratar resíduos sólidos das entidades hospitalares. Ele foi acusado do crime de peculato (apropriação irregular de bens públicos).

O caso é conduzido pela procuradoria por envolver verba federal do Sistema Único de Saúde (Sus) e do Fundo Nacional de Saúde Pública. Os recursos eram transferidos "fundo a fundo" — uma forma simplificada de movimentar dinheiro público sem a necessidade de celebrar convênios - ao grupo empresarial, que, por sua vez, subcontratava a Urban Serviços e Transportes.

Em nota, a defesa de Lopes ressaltou que o processo trata de fatos de 2017 e que a empresa Urban "não era contratada pelo Município, mas prestava serviços a terceira organização". "De todo modo, a empresa Urban cumpriu integralmente e de forma regular o objeto daquele contrato", diz o texto, e complementa:

"A defesa ainda não teve a oportunidade de discutir o mérito da ação, mas tem convicção que, assim como em outros processos, demonstrar-se-á a ausência de quaisquer ilícitos por parte da empresa Urban e seu administrador".

O advogado Augusto Vilela também destacou que nenhum dos contratos firmados recentemente tem relação com os processos antigos. Segundo ele, a empresa atua "preponderantemente na prestação de serviço público, há quase 15 anos, tendo como objeto as atividades de limpeza e coleta urbana", gerando atualmente "aproximadamente 1.034 postos de trabalho diretos e indiretos".

"A empresa não possui qualquer restrição de contratação com a Administração Pública", acrescentou ele.

O empresário também possui uma condenação de 1 ano de prisão (pena convertida em pagamento de multa) por retirar terra de uma fazenda sem autorização dos órgãos ambientais. A propriedade pertencia a um secretário municipal da cidade de Alvorada (RS), que também foi condenado no processo. Segundo o MPF, ele realizou o serviço após a prefeitura doar um terreno à empresa.

Em Alvorada (RS) — cidade onde ele reside —, Lopes também foi condenado junto com o prefeito e outros servidores municipais por atos de improbidade administrativa, em uma ação cível de 2014. O caso se referia a supostas irregularidades no fornecimento de ônibus escolares. Segundo o MP, o empresário foi beneficiado com uma licitação "direcionada" e não cumpriu o contrato ao entregar veículos usados e em menos quantidade do que o pactuado. Procurada, a prefeitura não se manifestou.

Em nota, a Prefeitura de São Leopoldo afirmou que a Urban presta serviços para a cidade desde 2016. Segundo a gestão, o contrato é emergencial porque houve suspensão judicial do processo licitatório após questionamento de uma empresa. “Enquanto o processo licitatório encontrar-se suspenso e tendo como objeto um serviço essencial para saúde pública, a continuidade da prestação da coleta de resíduos precisou ser garantida através de processo de contratação emergencial, obedecendo todos os preceitos legais exigidos para tal, incluindo a pesquisa de preço de mercado garantindo todos os princípios inerentes ao processo”, afirmou.

A prefeitura destacou, ainda, que foi atingida pela maior enchente da história do estado neste ano e que precisou atuar de forma urgente para reconstruir a cidade, o que incluiu um intenso processo de limpeza. “Os processos de contratação, mesmo que realizados emergencialmente, obedeceram a todos os preceitos legais solicitados pela legislação vigente e todas as empresas passaram por comprovar sua plena habilitação técnica e administrativa”, frisou, explicando que a Urban “apresentou toda a documentação que comprovou sua habilitação para contratar e prestar o serviço”.

Diante do cenário de calamidade pública, as prefeituras em questão fizeram essas contratações por meio de processo de dispensa eletrônica com disputa. Esta modalidade é mais célere que a licitação, sem todas as regras (como exigência de prazo para recurso), mas há tomada de preço no sistema de compras. As empresas vencedoras estão habilitadas a serem contratadas por órgãos públicos.

Mais um contrato

A Urban também conseguiu um contrato de R$ 9,5 milhões com a Prefeitura de Erechim para fazer coleta convencional. A cidade não foi atingida pelas enchentes, mas firmou o acordo com dispensa de licitação com tomada de preço utilizando o artigo da Lei de Licitações que trata de dispensa em casos “de emergência ou de calamidade pública”. O contrato é de seis meses prorrogáveis por mais seis. A empresa frisou que o contrato em questão não possui relação com a calamidade e que ocorreu dentro das regras comuns da lei de licitação.

Ao GLOBO, o prefeito Paulo Polis (MDB) afirmou que o contrato emergencial foi necessário porque o contrato anterior estava prestes a ser encerrado e a gestão ainda elabora um edital de nova licitação para colocar contêineres pela cidade em substituição ao trabalho dos garis. O gestor frisou ter confiança de que a escolha ocorreu com base no menor preço.

— Mas eu não conheço essa empresa e nem esse empresário. Vou verificar com o pessoal que cuida disse, ver se checaram, se o tribunal de contas viu essa questão. Da minha parte, pode ter certeza absoluta que eu não tenho questão nenhuma para esconder — disse.

Empresas sancionadas

Assim como foi feito durante a pandemia de Covid-19, uma medida provisória baixada pelo governo federal permitiu que as prefeituras gaúchas contratassem fornecedores "impedidos" ou "suspensos" por infrações administrativas — isto é, empresas que foram condenadas por irregularidades na prestação de serviços e, em situações normais, seriam proibidas de contratar com o poder público por um prazo determinado. Não é o caso das duas empresas citadas na reportagem.

Em meio à situação de calamidade pública, a CGU enviou uma cartilha às prefeituras, explicando que isso pode ocorrer desde que seja comprovada que determinada empresa é a "única alternativa viável para atender à emergência". Levantamento do GLOBO identificou que pelo menos 28 contratos foram firmados com empresas sancionadas.

Os pactos somam R$ 14 milhões fechados com 19 prefeituras e se referem a diversos tipos de serviço, como fornecimento de fiação elétrica a colchões para abrigos.

CGU monitora

Mais de 47 milhões de toneladas de lixo foram acumuladas nas ruas das cidades gaúchas com as cheias históricas dos rios do estado. A Controladoria-Geral da União e o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) criaram um grupo de trabalho para monitorar essas contratações.

“A CGU vem acompanhando a aplicação dos recursos enviados pelo governo federal ao estado e aos municípios do Rio Grande do Sul, visando a, com base em fatores de risco (materialidade, criticidade e relevância), instaurar tempestivamente procedimentos fiscalizatórios e investigativos focados na análise da correta aplicação do recurso público. Na análise dos fatores de risco, a contratação via dispensa é um dos aspectos a ser considerado na tomada de decisão sobre a instauração de procedimentos fiscalizatórios e investigativos”, informou o órgão em nota.


Fonte: O GLOBO