Ex-meia reflete sobre complicações cirúrgicas e psicológicas que levaram à aposentadoria aos 29 anos e celebra nova fase

(Guilherme Costa, hoje com 30 anos, é ex-jogador de futebol. Revelado pelo Vasco, defendeu também outras equipes do futebol brasileiro, como Boavista, Bragantino e Vitória, além da seleção nas categorias de base. Aposentou-se precocemente aos 29 em consequência de uma série de graves lesões.)

Lembro como se fosse ontem. Era uma quarta-feira à noite, 19 de fevereiro de 2020, em Bacaxá-RJ. Paulo Bonamigo, à época técnico do Boavista, me chamou pouco antes do intervalo: “Se prepara que você vai entrar”. Estávamos perdendo para a Chapecoense por 1 a 0 pela Copa do Brasil, e eu precisava muito de uma oportunidade. 

Tinha chegado ao clube acima do peso, mas consegui meu espaço nos treinos. Quando entrei na roda de bobinho para aquecer, meu adutor abriu logo no primeiro toque na bola. Só de me lembrar fico arrepiado. Na hora, pensei: “O cara fala que vou entrar, e dez minutos depois digo que senti o adutor? Vai parecer que pipoquei”. 

Falei com o médico do clube, fui ao vestiário e tomei uma injeção para aliviar a dor. Sem falar com mais ninguém. Na volta para o bobinho, não conseguia dar um passe, mas depois foi melhorando e fui para o segundo tempo.

Estava bem no jogo, fazendo tabelas, até que rolou o maldito lance. Antecipei um passe do adversário, mas o marcador chegou. Tentei proteger a bola, mas não achei o corpo dele. Quando virei, meu pé ficou preso na grama. 

Meu corpo foi para o lado, e meu joelho ficou parado. Ouvi o crac na hora. Caí com muita dor. E não era para menos. Naquele momento, eu tinha acabado de romper o ligamento cruzado do joelho esquerdo. Às vezes, acho que a lesão no adutor foi um aviso divino para não jogar. Mas não tem jeito. Quando é para ser...

Guilherme Costa mostra a sua cicatriz no joelho direito — Foto: Beatriz Orle

Foi a pior fase da minha vida. Não desejo para ninguém. Pensa aí: a cirurgia de cruzado já é difícil. E ainda era início de pandemia, os hospitais estavam fechando... O Boavista ficou numa indecisão com o Vasco, que era dono dos meus direitos, para decidir quem me operaria. Um jogava para o outro. Operei no Boavista e fui me tratar no Vasco. 

Só que, depois de um ano e meio, eu não conseguia esticar o joelho. Tive várias complicações no tratamento. O Vasco me operou outras duas vezes, mas eu nunca conseguia voltar ao campo. Fazia academia, quando tentava voltar, mal dava para correr.

Foi quando o Vasco, que é o clube da minha vida, errou comigo. Não me deixaram mais tentar voltar ao campo e fizeram um exame de força para comprovar que eu estava bem, porque eles não podiam me liberar sem que eu estivesse 100%. Mas me liberaram mesmo assim.

SOFRIMENTO DOS PAIS

Eu não guardo ressentimento. Na verdade, o Vasco é o clube que me deu tudo o que tenho. Até hoje, vou aos jogos, faço o ritual na Barreira. Chego cedo, fico no Sambarreira, vou à quadra, e todos me reconhecem. É maneiro para caramba. Estudei no colégio de São Januário. Cheguei lá aos 12 anos e saí com 27. A verdade é que eu respirava o Vasco e, por isso, sou torcedor até hoje.

Mas, sem clube, tive que refazer o ligamento por conta própria, porque as três cirurgias anteriores não surtiram efeito. Depois, ainda peguei uma infecção. Acabei fazendo outra cirurgia e quase perdi a perna.

Dessas cinco, acho que a que eu mais senti foi a da infecção, principalmente na parte mental. Todo mundo falava: “Com um ano você volta”. Mas deu perto de um ano, e eu mancava como se tivesse operado no dia anterior. Não via melhora.

No meio disso tudo, acabei ficando viciado em corticoide e ansiolíticos para dormir. Eu não conseguia nem andar. Então, não tinha muito com o que gastar energia para cansar meu corpo. Acabava passando noites em claro e com muita dor no joelho. Até hipnose do sono eu fiz. Pesquisei de tudo na internet...

Mas o pior era fazer meus pais sofrerem. Eles me olhavam com pena, um olhar de quem diz: “Queria estar no seu lugar. Tinha que ser eu aí”. Minha situação era tão crítica que eu precisava de ajuda para sair da cama e ir ao banheiro. Mas segurava a vontade e esperava meu pai sair de casa para pedir a ajuda da minha mãe, porque ele sofria e chorava muito.

Até me emociono ao falar do meu pai... Desde o início, ele ia a todos os campeonatos da base. Já foi me ver no interiorzão de Minas e de São Paulo, viajou para Colômbia, Bolívia... Ele sofreu muito nesse meu período. Mais que eu, até.

Eu estava no escuro total, o que me prejudicava mais ainda. Uma vez, bati de carro e quase morri. Minha cicatriz no rosto não me deixa mentir. Eu queria uma maneira de fugir da realidade.

Ex-meia carrega cicatriz no rosto após acidente de carro — Foto: Beatriz Orle

Era difícil, porque eu tinha um sonho, uma expectativa e fiz muito esforço para voltar, mas não consegui. Nunca tinha operado, então não sabia como funcionava. Logo eu, que sempre fui tão ativo. Eu e a bola sempre fomos unha e carne, desde os tempos de criança no Engenho da Rainha.

O MAIOR ARREPENDIMENTO

Desde moleque, sempre levei tudo na boa. Em 2006, quando tinha 12 anos, disputei um campeonato pelo Estácio, time fruto de uma parceria entre a Estácio de Sá e uma escolinha do Gonçalves, ex-zagueiro. Ficamos em penúltimo, mas fui o vice-artilheiro. O time era muito bom. Eu jogava com o Mattheus, filho do Bebeto, e o Adryan. 

Na época, o Gonçalves tinha um contato no Flamengo e conseguiu uma peneira para a gente. Nós três passamos para o sub-12. O treinador era o Zé Ricardo. Mas eu não quis ficar lá. Sempre fui do subúrbio, acostumado com moleques mais simples, não me adaptei ao Ninho do Urubu.

Pouco tempo depois, o Álvaro Miranda, filho do Eurico, me chamou para uma peneira no Vasco. Logo no primeiro treino, ele ficou apaixonado. Me identifiquei com a molecada de lá. Não via nem como profissão. Só ia e curtia. Mandei tão bem que cheguei à seleção. Joguei pelo Brasil dos 15 aos 18 anos. Era visto como o sucessor do Coutinho, uma promessa enorme.

Só que o meu período de transição para o profissional foi ruim. Tive muitas lesões. Também dei azar: o Vasco entre 2011 e 2012 era um timaço. Em 2016, fiz um Carioca muito bom pelo Boavista e voltei para o Vasco. Só que, de novo, as lesões me atrapalharam. Lembro que os caras me olhavam com pena. Teve um dia em que tomei uma injeção no joelho para lubrificar a articulação, mas o líquido vazou. Fiquei dois dias sentindo uma dor enorme no nervo ciático, depois minha perna atrofiou. Lembro do Nenê me olhando com pena. Ali, ninguém mais dava nada por mim. Eu era a promessa que não deu certo.

Só que, um ano depois, em 2017, eu estava fazendo gol com passe do mesmo Nenê. Teve um, em Moça Bonita, contra o Bangu, em que me emocionei muito. No ano seguinte, comecei bem outra vez. Só que, quando saiu a lista para a Libertadores, de 23 nomes, aquele mesmo Zé Ricardo só havia colocado 16 e deixado o resto em aberto. Fiquei fora. 

Na hora, fiquei muito chateado, porque tinha realmente ido bem na campanha para a Libertadores. Naquela época, o Vitória me queria, e eu, com raiva, fui. Hoje, me arrependo, porque, se fico mais três meses, teria chance de novo. O Zé, que acho um grande treinador, caiu. Mas não tive paciência...

NOVO CAMINHO

Depois disso, fui emprestado para o Boavista, e aí rolou toda a história que já contei. Quando comecei a me recuperar das cirurgias, em maio de 2022, estava sem norte. Não sabia o que fazer. Ainda tentei voltar a jogar, treinei no Barra da Tijuca, mas não assinaram meu contrato, então desisti do futebol. Me aposentei aos 29 anos, porque não queria mais conviver com tantas frustrações.

Fui entregar geladeira junto com meu pai e comecei a rodar como motorista de aplicativo, mas só me encontrei agora, fazendo um trabalho de analista de desempenho individual com alguns jogadores na Next Step. Atendo a uma molecada do Flamengo e do Fluminense e outros atletas mais velhos. Tudo o que eu vivi, vejo como uma riqueza para a minha vida e para passar para esses meninos.

Olhando para trás, acho que sou privilegiado. Não me vejo como frustrado, por mais que fique sentido pelas lesões. Do meu grupo de juniores, só eu e mais dois viramos profissionais. Eu tive o privilégio de nascer com esse dom e ter recebido uma chance. Vivi o melhor lado da bola, seleção, viagens... E joguei com Marquinhos e outros que admiro.

Agradeço demais aos meus pais, Wiliam e Rosângela, à minha irmã, Isabela, e à minha namorada, Julyana. Estamos juntos há dois anos. Ela me conheceu num período de baixa, quando reconstruí o ligamento. Segurou a barra legal. Agora que as coisas estão melhorando, quero retribuir para ela e para a minha família.

Guilherme Costa com seus companheiros de trabalho como analista de desempenho — Foto: Beatriz Orle

É bom extravasar assim, porque já tive a oportunidade de falar e nunca quis expor ninguém. Com o Vasco, por exemplo, não tenho do que reclamar, porque amo demais esse clube. O grito que eu e meu pai demos com os gols do Estrella e do Leandrinho contra o São Paulo... 

No início do jogo, meu pai até comentou sobre o Estrella: “Esse moleque joga muito. Me lembra até você no teu início”. Eles precisam dar mais valor à base. A solução está dentro de casa. Essa identificação faz a diferença. Eu vou estar sempre na torcida, com os mesmos rituais: cerveja na barreira, samba e arquibancada.


Fonte: O GLOBO