Ex-diretores buscavam convencer bancos a alterar documentos entregues a auditorias para maquiar empréstimos a fornecedores
Base da fraude contábil bilionária nas Americanas, a operação financeira chamada de risco sacado deverá ser explorada em uma nova denúncia do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro (MPF) contra ex-dirigentes da rede. De acordo com as investigações, fazem parte da base da investigação as conversas de um grupo de WhastApp de ex-funcionários da varejista chamado “Planejamento Financeiro”.
Segundo o MPF, o grupo durou alguns anos e tratou de diversos assuntos. Em vários momentos, os participantes falam da necessidade de obter documentos para a auditoria que não trouxessem as informações de operação de risco sacado, que envolve os pagamentos de fornecedores.
"Isso será mais explorado em eventual denúncia", atesta o parecer do MPF que serviu de base para a operação da Polícia Federal da semana passada que cumpriu busca e apreensão em endereços de ex-executivos e para os pedidos de prisão do ex-CEO da Americanas, Miguel Gutierrez, e da ex-diretora Ana Saicali.
Mas o que é risco sacado?
O risco sacado, comum no varejo, é uma triangulação na qual a varejista antecipa um crédito aos fornecedores, que recebem de um banco que depois cobra da Americanas.
Para não acender o alerta dos analistas sobre o tamanho dessas operações, que eram dívidas junto a bancos, a empresa aplicava redutores artificiais nessa rubrica. Isso era feito por meio dos contratos de VPC (Verbas de Propaganda Cooperada), por meio dos quais a companhia reduzia seus custos artificialmente e ampliava os lucros.
Um dos alvos da investigação que integrava o grupo é Fábio Abrate, ex-diretor Financeiro da B2W (braço digital da Americanas, e ex-diretor executivo das Americanas SA. Segundo o MPF, há evidências de que ele interferiu junto ao Banco Santander, para que a instituição não informasse à auditoria externa sobre as operações de risco sacado.
Essa fraude foi uma das principais responsáveis pelo rombo superior a R$ 25 bilhões na varejista e que durou ao menos uma década, de acordo com as investigações do MPF.
'Você é o cara!'
Segundo as investigações, a partir de celulares e documentos apreendidos no ano passado, a bandeira vermelha na antiga diretoria das Americanas foi acionada em 2016, quando Santander, HSBC e Itaú informaram à empresa de auditoria na época a existência de dívidas decorrentes das operações de risco sacado — e que não eram contabilizadas no balanço.
Para isso, foi feita uma operação fraudulenta para enganar os auditores através de uma tentativa de manipulação envolvendo os bancos. Quando um deles conseguia alcançar o objetivo da manobra, era imediatamente elogiado no grupo de mensagem: "Você é o cara!".
Quando um dos funcionários das Americanas conseguia driblar os bancos, era elogiado, segundo documentos obtidos pelo MPF — Foto: Reprodução/O GLOBO
De acordo com o MPF, para contornar os riscos decorrentes da descoberta pelos auditores de dividas não contabilizadas, os ex-funcionários da varejista entraram em contato com as instituições financeiras e, sob falso pretexto, solicitaram que as informações sobre as dívidas decorrentes de operações de risco sacado fossem “retificadas”.
Em mensagem enviada pelo então diretor Executivo de Tesouraria das Lojas Americanas, Luiz Saraiva, ao HSBC, ele pede “um documento complementar dando o conforto de que essas operações são solicitadas pelos fornecedores”. Porém, para o MPF, era falsa a ideia de que as operações de risco sacado eram solicitadas pelos fornecedores.
O MPF afirma que não se sabe como como foi a negociação com o banco, mas o HSBC remeteu nova carta de circularização nos termos solicitados, observando, que, ainda sim, “sob a ótica do HSBC, a mudança de nomenclatura não altera o produto e a sua forma de contabilização”.
Com a tática dando certo no HSBC, os ex-funcionários usaram estratégia semelhante com o Santander. No grupo de WhatsApp, Abrate pediu aos executivos do banco que não informassem à auditoria externa sobre as operações de risco sacado.
Em uma das conversas, Timotheo Barros, que chegou a ser CEO/CFO da Americanas S.A, pergunta para Abrate: “Como estamos com os bancos para retirar das cartas a info das operações com fornecedores. Vida/Morte para nós”. Depois complementa: "Precisamos retirar isso das cartas".
Mensagem de ex-funcionários da Americanas ressaltam a necessidade de reunião com os bancos — Foto: Reprodução/O GLOBO
Em outro momento destacado pelo MPF, Barros volta a cobrar Abrate sobre as cartas das instituições bancárias, perguntando novamente: “Fabio, como esta o assunto das cartas de circularização com os bancos. Precisamos retirar isso das cartas".
Abrate responde: “Estamos falando com os bancos mas não podemos contar com isso. Devemos corrigir a rota da operação. Já foi indicado o caminho. Na próxima quarta vamos retomar a nossa reunião sobre o assunto”.
Vinte dias depois, Abrate diz que conseguiu que os bancos Santander e Safra emitissem as cartas “sem o valor” das operações de risco sacado. O próprio diz que foi um "golaço". E é elogiado: "Vc é o cara!!!". Para o MPF, Abrate é um dos principais responsáveis pela execução da fraude.
Em 2018, o objetivo de uma nova reunião era evitar que o Itaú comunicasse aos auditores a correta natureza das operações de risco sacado. Christina Nascimento, que era a responsável pela área de suporte comercial, sugere frases para a reunião com o banco.
Para "enganar" o banco, ela lembrou que deveria ser dito que as operações de risco sacado "ocorrem independentemente de ações de Lojas Americanas/B2W, sendo solicitado apenas o reconhecimento da existência do contas a pagar".
O que dizem os bancos
Procurado, o Itaú Unibanco nega qualquer participação, direta ou indireta, na fraude contábil que a Americanas sofreu. "O banco sempre prestou às auditorias e aos reguladores informações corretas e completas sobre as operações contratadas pela empresa, conforme legislação vigente e melhores práticas de mercado".
O banco diz que, conforme já esclarecido, "os informes enviados às auditorias sempre alertavam para a existência das operações de risco sacado".
O comunicado segue: "Os diretores da Americanas envolvidos na operação interagiram com representantes do Itaú no sentido de retirar os alertas. O banco nunca concordou com esse pedido e inclusive interrompeu, por mais de 6 meses, as operações de risco sacado. O Itaú reforça que a elaboração das demonstrações financeiras é de responsabilidade única e exclusiva da administração da empresa e repudia qualquer tentativa de responsabilização de terceiros por falhas ou fraudes nessas demonstrações”, disse em nota.
O Banco Santander afirmou que "repudia veementemente qualquer insinuação contrária à lisura de sua relação com a Americanas, eventualmente feita por pessoas responsáveis pelas irregularidades ocorridas em sua administração e das quais o banco também é vítima".
Segundo a instituição financeira, seus funcionários informaram "integralmente os saldos das operações da Americanas no Sistema Central de Risco do Banco Central", argumentando que essa plataforma era uma das fontes que os auditores poderiam usar para avaliar as contas da varejista, além das cartas de circularização.
O Santander lembra que foi a própria varejista que, depois da revelação da fraude contábil, atribuiu essa conduta à sua diretoria anterior em um fato relevante de junho de 2023. "Ou seja, o documento comprova que a responsabilidade pelas ‘inconsistências contábeis’ é exclusiva da empresa, por intermédio de sua antiga diretoria.”
O Banco Safra não retornou.
Falsificação de assinaturas
Com a tática de convencer os bancos, houve a falsificação de assinaturas para fazer as cartas de circularização. É nesse contexto que a funcionária Flavia Carneiro questiona Paula Faria, ambas da área de suporte comercial, que era responsável pelas cartas verdadeiras e falsas, por erro nas assinaturas. Reclama que as assinaturas vieram idênticas.
Ex-funcionárias avaliam o uso de uma assinatura idêntica em dois documentos, segundo o MPF — Foto: Reprodução/O GLOBO
"A questão não ser a mesma pessoa. E na mesmíssima posição na linha e no mesmo enquadramento. Embora seja a mesma pessoa ela não posicionaria a assinatura exatamente igual na linha destinada a assinatura”, alertou Flavia.
Fonte: O GLOBO
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