Mesmo em um cenário em que cada vez mais brasileiros se identificam como de direita, o apoio a pautas conservadoras, como o endurecimento de regras contra o aborto e restrições ao casamento gay, enfrenta impasses e até retrocessos. As conclusões vêm à tona na edição de 2024 da pesquisa “A Cara da Democracia”, cujos dados indicam que temas caros ao conservadorismo recebem adesões díspares.

Enquanto a criminalização do uso de drogas, por exemplo, alcança o apoio de dois em cada três entrevistados, temas como a ‘saidinha’ de presos e a adoção de cotas raciais não têm maioria clara nem para um lado, nem para outro.

Para especialistas, a série histórica da pesquisa atesta uma correlação cada vez maior entre posições conservadoras e se identificar à direita no espectro político — fenômeno que associam à ascensão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no cenário nacional. No entanto, eles também enxergam limites ao conservadorismo, especialmente em episódios como o projeto de lei Antiaborto.

— O brasileiro já foi mais conservador em algumas agendas, como redução da maioridade penal e criminalização do aborto. O que está acontecendo não é ele ser cada vez mais conservador no campo moral, mas sim identificar isso cada vez mais como adesão à direita — afirma o cientista político Leonardo Avritzer, pesquisador da UFMG.

A pesquisa deste ano contou com mais de 2,5 mil entrevistas presenciais em 188 cidades de todo o país, entre o fim de junho e o início de julho. O levantamento é conduzido pelo Instituto da Democracia (IDDC-INCT), que reúne pesquisadores das universidades UFMG, Unicamp, UnB e Uerj, e tem financiamento do CNPq, Capes e Fapemig. A margem de erro é de dois pontos percentuais.

Para exemplificar os impasses da agenda conservadora, Avritzer observa que, embora mais de 70% dos entrevistados sejam contra a legalização do aborto, 40% dizem que “não deveria haver pena de prisão” para mulheres que interrompem a gravidez. Além disso, 18% se disseram contrários ao aumento da pena de prisão em caso de aborto, uma das prerrogativas do PL Antiaborto, que busca equiparar a prática ao crime de homicídio.

Diretor do Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop) da Unicamp, o cientista político Oswaldo Amaral observa que houve uma queda da diferença entre brasileiros contrários e favoráveis à legalização do aborto. O percentual dos que se dizem contra recuou de 78% para 72%; já os a favor são 17%, ante 14% do ano passado. Para Amaral, os dados sugerem que o PL Antiaborto, apresentado pela bancada bolsonarista na Câmara dos Deputados, pode ter sido um “tiro no pé”.

— As pessoas são contra o aborto, mas de uma maneira abstrata. Concretamente, não querem ver mulheres na cadeia por terem abortado, mesmo em setores mais conservadores — avalia.

A pesquisa mostra que há gradações na adesão dos brasileiros a pautas mais associadas ao conservadorismo. O casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, é um dos temas mais divisivos, em que os percentuais de entrevistados contrários e favoráveis se iguala: 45%. A união homoafetiva foi legalmente autorizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2011, mas o Congresso nunca legislou sobre o assunto.

Já no caso da adoção de crianças por casais gays, a maioria dos entrevistados é favorável: 53%. O STF também já reconheceu a adoção homoparental, em 2015. O percentual representa uma inversão da tendência registrada na primeira edição de A Cara da Democracia, em 2018. À época, pouco mais da metade dos entrevistados eram contra a adoção.

Infográfico: Adesões díspares — Foto: Editoria de Arte

Queda no punitivismo


Também há descompassos na visão punitivista na segurança pública. Segundo o levantamento, quase dois terços (65%) dos entrevistados defendem a redução da maioridade penal, atualmente fixada em 18 anos. O percentual vem caindo ano a ano; em 2018, eram 81% com esta posição.

Apesar da posição majoritária pró-encarceramento, há empate técnico quando o assunto é a autorização para que presos deixem temporariamente a cadeia em alguns feriados e datas específicas: 49% querem proibir a chamada “saidinha”, mas 45% defendem mantê-la.

Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Uerj, o cientista político João Féres observa ainda que, embora as respostas à pesquisa sugiram que o eleitorado brasileiro é mais conservador na pauta de costumes, há uma tendência de posições consideradas mais associadas à esquerda em relação a políticas sociais.

O apoio ao programa Bolsa Família, por exemplo, lançado no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), abarca oito em cada dez entrevistados. Também há uma posição majoritariamente contrária à privatização da Petrobras: 54%.

No caso da adoção de cotas raciais, política que despertou controvérsias na própria esquerda quando foi lançada, os percentuais contra e a favor são praticamente iguais. O apoio sobe, no entanto, quando a pergunta se restringe às cotas no ensino universitário: 54% se dizem favoráveis.

“Parâmetro” à direita

A série histórica de A Cara da Democracia mostra que houve um aumento expressivo da identificação com a direita entre os brasileiros. Hoje, 36% se colocam totalmente à direita do espectro político, o dobro do início da série, em 2018. Também cresceu o índice dos que se colocam mais à esquerda, embora o pico tenha ocorrido em 2021.

À época, no auge da pandemia da Covid-19, o governo Bolsonaro implementou diferentes versões de um auxílio emergencial, depois remodelado no Auxílio Brasil, que substituiu o Bolsa Família. Pesquisas de intenções de voto na campanha de 2022 mostraram que Lula era mais votado nas faixa de renda que engloba os beneficiários do auxílio.

— Os estudos mostram que a inteligibilidade dos conceitos de direita e esquerda é tradicionalmente baixa no Brasil, mas que essa cognição melhorou a partir do Bolsonaro, que virou uma espécie de parâmetro e tirou as pessoas do armário. O PT também tem um papel nessa diferenciação, na medida em que Lula insiste em um discurso pró-pobre, que acaba vinculado à esquerda — avalia João Féres.

Para Oswaldo Amaral, diretor do Cesop, Bolsonaro ajudou a alavancar o percentual dos que se identificam com a direita ao reiterar, em seus discursos, a vinculação entre este campo ideológico com a pauta de costumes. Ele nota que houve uma redução significativa, desde 2018, na parcela de entrevistados que não sabe se identificar: de 34%, caíram para 10% neste ano.

— A retórica pró-família e costumes não só do Bolsonaro, mas de outras lideranças políticas e até religiosas que ganharam notoriedade, fornece uma espécie de atalho para o eleitor, que conclui: “se penso assim, significa que sou de direita” — afirma Amaral.


Fonte: O GLOBO