Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que Justiça recebeu quase 664 mil pedidos do gênero só no ano passado
Em um país onde a violência contra a mulher continua um problema grave, segundo o último anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a Lei Maria da Penha completa hoje 18 anos em vigor com um avanço para ser comemorado: o maior uso da medida protetiva de urgência, que impõe restrições de contato ou proximidade do agressor com a vítima, previsto na norma. De acordo com os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2023, o número de pedidos duplicou no Judiciário em relação a 2019.
A Justiça recebeu no ano passado quase 664 mil pedidos de medida protetiva, de acordo com o documento do fórum. Desses, 81% foram concedidos. Em 2023, foram pouco mais de 547 mil solicitações, com 426 mil aceitas. A lei prevê que a medida tem de ser analisada no prazo máximo de 48 horas. Desde 2018, ela pune com a prisão de seis meses a dois anos quem desrespeitar a ordem da Justiça, o que a tornou mais efetiva. A medida pode ser pedida junto às delegacias especializadas de atendimento à mulher ou de forma online e com auxílio das casas-abrigo, centros de referência da mulher e juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Desconhecimento
O desconhecimento de parte da população deste recurso, no entanto, ainda é um obstáculo para que ele seja usado. Pesquisa do Observatório da Mulher Contra a Violência (OMV) e do Instituto DataSenado, divulgada no ano passado, mostrou que 68% das entrevistadas dizem conhecer pouco sobre o que é e como requerer a medida protetiva e outras 15% não sabem nada sobre o tema. Apenas 16% afirmaram conhecer muito.
A artesã A. N., de 50 anos, que sofreu com violência do irmão desde a adolescência, só ficou sabendo o que era medida protetiva há dois anos, quando o parente que a agredia desde a adolescência e chegou a tentar estuprá-la foi preso.
A Justiça concedeu a proteção à artesã, que hoje faz graduação em Gestão de Tecnologia da Informação graças a uma bolsa de estudos recebida do Centro de Referência Clarice Lispector, que acompanha mulheres em vulnerabilidade, em Recife. Mas ela agora teme que a restrição seja suspensa pela Justiça e o irmão saia da cadeia.
— A Lei Maria da Penha salvou minha vida, mas as pessoas precisam entender que mulheres com deficiência ficam ainda mais reféns dos agressores — diz a artesã, que é cadeirante por causa de uma atrofia muscular desenvolvida após uma poliomelite.
Atualmente, a lei não prevê tempo de duração para a medida protetiva e estabelece que a vítima deve ser consultada antes de ela ser suspensa. No entanto, nem sempre isso acontece, afirma a advogada Marilha Boldt.
— Não poderia ter duração mínima. É pelo tempo que precisar, mas tem juiz que tem dado 60, 120 dias — opina Boldt.
Atuando como integrante do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres e criadora do Instituto Superação da Violência Doméstica, a advogada de 39 anos conta com a própria história para fundamentar essa opinião. Há dez anos, Boldt pôs fim a um relacionamento abusivo de oito anos, que começou com episódios de violência psicológica e patrimonial sucedidos pela violência física. Só então ela conseguiu fazer um registro na delegacia contra o ex-marido, que, mesmo assim, descumpria diariamente a medida protetiva determinada pela Justiça — a prisão pelo desrespeito ainda não estava em vigor.
— Ainda há um descrédito grande na hora da denúncia. Muita coisa mudou, mas no meu caso nada aconteceu com o meu agressor — diz a advogada, que não conseguiu, na primeira tentativa, fazer um boletim de ocorrência contra as ameaças do ex.
A Defensoria Pública foi o meio pelo qual E. L. conseguiu na Justiça a medida protetiva. A cearense denunciou o ex-companheiro por violência psicológica, após ele persegui-la virtualmente e tentar alegar alienação parental, mesmo sem manter contato com o filho do casal, de 3 anos. Atualmente, E. L. afirma que o pai ainda deve R$ 80 mil em pensão alimentícia.
— Ele me violentou por e-mail, me chamava de louca, dizia que estava perdendo a paciência após eu fazer a denúncia. Aturei tudo por dois anos e hoje ele tenta alegar que eu sou a agressora para retirar a queixa — relata a cearense, que, como a artesã do Recife, também receita ter a proteção extinta. — A juíza solicitou uma audiência para decidir sobre a manutenção da medida, e estou temerosa. Ando com spray de pimenta e estou com quadro de pânico.
A lei foi batizada em homenagem à farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que ficou paraplégica após ser baleada nas costas em um assalto forjado pelo marido, o economista Marco Antônio Heredia Viveros, em 1983. Quinze dias depois, Viveros tentou eletrocutá-la no banho. A demora no julgamento das tentativas de homicídio levou o Brasil a ser condenado Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, em 2001, por negligência, omissão e tolerância à violência doméstica e familiar contra as mulheres. No ano seguinte, Viveiros foi condenado e a lei começou a ser discutida, ainda sob o impacto da condenação internacional.
Falta de investimentos
A promotora do Ministério Público de São Paulo Fabiana Dal’Mas ressalva que a falta de conhecimento da vítima sobre a Maria da Penha, e a falta de investimento em equipamentos públicos de assistência dificulta o processo de denúncia e, consequentemente, o recolhimento de informações para proteção.
— Muitas denúncias não têm andamento por falta de provas ou porque as vítimas não sabem como dar prosseguimento. As varas especializadas em violência doméstica ajudam a acelerar os processos, porque “furam a fila”. Mas o enxugamento dos investimentos em governos anteriores criou uma defasagem no atendimento — lamenta. — A legislação é ótima, mas ainda requer mais pessoal e equipamentos de escuta e fortalecimento das políticas de prevenção por meio da educação.
Enquanto ainda há obstáculos para a aplicação da Maria da Penha e das medidas protetivas, novos casos de violência mostram que ela continha necessária. No sábado, a Polícia Federal prendeu um brasileiro que também tem cidadania americana por agredir a mulher durante um voo entre Miami e Fortaleza.
Com sinais de embriaguez, o passageiro causou tanto tumulto, chegando a ameaçar de morte um comissário, que o avião precisou mudar a rota até o Aeroporto Internacional de Belém, onde ele acabou preso. Ouvida pela Polícia Federal, a mulher pediu uma medida protetiva de urgência.
Fonte: O GLOBO
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