Neste artigo convidado, o especialista em regulação de transporte terrestre e servidor da ANTT, Felipe Freire da Costa fala sobre a regulação que prevê distribuição de linhas por meio de sorteios
Há alguns dias, três apostadores da Mega-Sena dividiram um prêmio de R$ 102,6 milhões. Possivelmente eles não sabem, mas pagando R$ 6,00 pela aposta simples, a esperança matemática de não ter prejuízo ocorre nos sorteios em que o prêmio total é superior a R$ 127 milhões. A esperança matemática representa o valor médio que se espera ganhar ou perder em um jogo de azar, considerando as probabilidades de todos os possíveis resultados.
Anualmente, milhões de brasileiros não se importam em gastar alguns reais na esperança – não-matemática – de ficarem milionários. O altíssimo risco de perder um punhado de reais compensaria a baixíssima probabilidade de ganhar o sonhado prêmio: uma chance em 50 milhões.
As atividades econômicas ocorrem em um ambiente distante da aleatoriedade que rege os jogos de azar. Nesse ambiente, ser inovador, eficiente, produtivo e oferecer produtos ou serviços de qualidade são atributos necessários ao sucesso de uma empresa em determinado segmento.
No setor de transporte rodoviário interestadual de passageiros, o TRIP, contudo, antes de ser inovador, eficiente, produtivo e prestar um serviço de qualidade, a empresa precisa ter sorte, muita sorte. Muita sorte mesmo.
Funciona assim: quem pretende obter autorização para operar uma linha de ônibus precisa indicar os mercados (as ligações) em que deseja prestar o serviço e cadastrar os motoristas e os veículos em número compatível com a operação proposta. Essa é toda a parte racional do processo, a partir daí impera a aleatoriedade.
A agência reguladora, a ANTT, previu uma janela anual – como se a liberdade de competição fosse um evento como o dia dos pais (Parabéns, Pai!), com data previamente conhecida – em que serão disponibilizadas cotas de ingresso para cada ligação interestadual. Em 2024, haverá cotas para mercados que, por décadas, são atendidos por uma única operadora ou que não são atendidos por nenhuma empresa.
Sejam bem-vindos à Mega-Sena regulatória. Vamos imaginar que uma nova empresa consiga estruturar uma operação viável somente com mercados desatendidos ou concorrendo com velhos monopolistas. Ela não vai precisar somente de motoristas, veículos e capital social compatível com a frota cadastrada: vai precisar de sorte.
Primeiro, precisa torcer para que o número de interessados nos mercados da linha pretendida seja inferior à cota de ingresso fixada pela ANTT. Caso a empresa tenha interesse em mercados que tenham o mínimo de atratividade operacional, é provável que existam mais empresas interessadas nesses mercados do que cotas de ingresso.
Para resolver esse problema, a agência reguladora estabeleceu um critério tão simples quanto ilegal: o sorteio dos mercados. Previu-se que os mercados serão sorteados isoladamente, como peças de um Lego. Ao final dos sorteios, as empresas juntariam as peças obtidas e tentariam montar uma linha de ônibus que faça algum sentido operacional e econômico.
Um critério conveniente para quem já opera no setor e pode se aventurar na aleatoriedade para ampliar sua operação anualmente com um ou mais mercados – a serem inseridos em linhas de ônibus já existentes – mas nada favorável às empresas que precisam estruturar suas operações do zero.
Vejamos o caso de uma nova entrante que pretende operar uma linha com 50 mercados – uma linha padrão no setor – e que tenha que participar do sorteio de 26 desses 50 mercados. A probabilidade de ela obter sucesso nesses 26 sorteios, considerando-se o caso mais favorável, de dois candidatos por vaga, é de 1 em 67 milhões.
A diferença entre ter sucesso em 26 sorteios da ANTT ou ganhar na Mega-Sena é que é mais fácil ganhar na Mega-Sena, e essa paga um prêmio milionário.
Pense bem: se você é um empreendedor, quer ingressar no setor de TRIP e preza pela esperança matemática e pela esperança não-matemática, as normas da ANTT têm um recado claro para você: novos competidores não são bem-vindos. Melhor dirigir-se a uma casa lotérica.
* Servidor público da carreira de Especialista em Regulação de Serviços de Transportes Terrestres, mestre em Engenharia de Transportes pela Coppe/UFRJ, pós-graduado em Regulação de Transportes Terrestres pela UFRJ e em Direito da Regulação pelo IDP, e engenheiro civil pela UFC.
Fonte: O GLOBO
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