Expectativa na Corte é que a discussão sobre o tema se estenda até dezembro
A primeira audiência de conciliação no Supremo Tribunal Federal sobre o marco temporal para demarcação das terras indígenas, na segunda-feira, foi feita em meio à tensão causada no campo por um novo enfrentamento que opôs fazendeiros e povos originários no sábado, deixando dez guaranis kaiowás feridos em Douradina (MS) no sábado, e o temor de que outros surjam. A insatisfação de representantes dos indígenas também marcou o começo dos debates na Corte.
Integrantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) criticaram o formato da comissão criada para negociar a conciliação e chegaram a sinalizar que poderiam abandonar a discussão, segundo informou a CNN.
Logo no início do encontro, a Apib pediu a suspensão provisória da lei que criou o marco temporal, por considerar que o texto estimula a violência no campo. Mas a medida excede o poder da comissão de conciliação criada no STF sobre o tema. O ministro do Supremo Gilmar Mendes, que convocou as audiências depois de a lei ser questionada judicialmente, disse que analisará o pedido posteriormente.
— A lei viola direitos constitucionais, territoriais, dos povos indígenas. E a vigência tem contribuído para um cenário de incremento da violência contra os povos indígenas — criticou o coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Maurício Terena.
Barrados na portaria
No início da sessão, o presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso, ainda pediu desculpas por um grupo de indígenas que iria assistir à tentativa de conciliação ter sido barrado na entrada da Corte. Barroso afirmou que foi um “erro grave da segurança” e que eles foram posteriormente liberados.
Ao fim da reunião, ficou acertado um calendário de novos encontros no dia 28 e entre os dias 9 e 16 de setembro. Mas a expectativa na Corte é que a discussão se estenda até dezembro. A audiência teve também representantes do Congresso, do governo federal, dos estados e dos municípios.
A lei do marco temporal foi aprovada pelo Congresso uma semana após o STF considerar inconstitucional a tese de que os indígenas só têm direito às terras que ocupavam no momento da promulgação da Constituição, em novembro de 1988. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou a vetar parte da medida aprovada pelos parlamentares. Mas o veto foi derrubado.
Enquanto a Apib pediu a suspensão temporária da lei, o presidente da Frente Parlamentar Agropecuária, deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), disse em nota que a questão do marco tem de ser resolvida “em definitivo” para retirar a insegurança jurídica do campo.
Ao comentar o confronto no sábado no Mato Grosso do Sul, o deputado afirmou que a área reivindicada pelos indígenas guaranis-kaiowá que gerou a briga “não tem nenhuma homologação para demarcação da terra indígena”. Segundo a Força Nacional de Segurança Pública, que atua em Douradina, informou ao g1, fazendeiros relataram que reagiram a um incêndio e a um posterior ataque dos indígenas a terras que seriam de produtores rurais. O Ministério Público Federal investiga o episódio.
O episódio de Douradina está entre os contabilizados pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em julho e agosto para indicar a continuidade dos conflitos entre os povos originários e produtores rurais (leia mais no box), que atingiram um recorde no ano passado, segundo dados divulgados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) em abril. Segundo a comissão, houve 2.203 conflitos no campo em 2023. Em 554 desses casos, houve violência contra 1.467 indivíduos.
O secretário-executivo do Cimi, Luis Ventura, apoia a interpretação do coordenador jurídico da Apib de que a demora em uma definição sobre o marco temporal tem uma relação direta com a violência contra comunidades indígenas.
— Com a vigência da lei, os processos administrativos de demarcação são diretamente bloqueados e paralisados e a segurança jurídica nos territórios fica comprometida. Ruralistas e fazendeiros se sentem com força para despejar com violência as comunidades quando elas retomam o território tradicional que lhes pertence — criticou.
Na tentativa de conciliação, Barroso reconheceu que, além de antagonizar defensores dos indígenas e o agronegócio, o marco temporal representa uma “clara divergência entre o Judiciário e o Executivo, de um lado, e o Legislativo de outro lado”. Mas o presidente do Supremo fez uma defesa para um acordo.
— Conciliação, sempre que possível, é melhor do que conflito, porque em conflito sempre há vencedores e há vencidos — afirmou o ministro, que no início da audiência alegou que nenhum dos lados pode participar do debate achando que será vencedor.
O presidente do STF ressaltou que o que ficar decidido na conciliação ainda terá que ser confirmado no plenário, pelos 11 ministros da Corte.
Gilmar Mendes afirmou na reunião que as “respostas tradicionais” não estão sendo suficientes para resolver os problemas relacionados às terras indígenas.
— É chegada a hora de todos sentarem à mesa e chegarem a um consenso mínimo sobre pontos que traduzem o anseio de milhões de indígenas e não indígenas — defendeu.
A senadora Tereza Cristina (PP-MS), ex-ministra da Agricultura no governo de Jair Bolsonaro, disse que irá participar da discussão com o objetivo de evitar que “todos tenham a justa consideração desse problema”:
— Venho despida de qualquer preconceito, para ajudar e ver se nós conseguimos, ouvindo a todos, chegar a um denominador comum em que ninguém saia prejudicado.
Também representante do Legislativo na audiência, o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), defendeu que não se deve “eternizar conflitos”:
— Eu tenho minhas convicções, mas eu venho aqui com espírito de não eternizar conflitos e não eternizar problemas. Não é salutar para ninguém, nem para índios, nem para não índios, porque ninguém consegue ter paz, produzir, viver na forma que entende.
O levantamento divulgado em abril pela CPT indica que os indígenas foram as principais vítimas de conflitos no campo no Brasil em 2023, representando 25,5% (374) do total de pessoas afetadas. Em seguida, estão os pequenos proprietários (20,3%), trabalhadores sem-terra (20,1%), posseiros (13,5%) e quilombolas (3,9%). A CPT atribui a autoria da maior parte desses episódios de violência a fazendeiros.
A comissão identificou 31 mortos em conflitos no campo. Entre eles, 14 eram indígenas. Os demais eram sem-terra (9) e quilombolas (3). A maior parte das mortes foi na fronteira do desmatamento entre Amazonas, Acre e Rondônia.
Conflitos em julho e agosto
- Paraná: em julho, quatro comunidades do povo Avá-Guarani, da Terra Indígena Tekohá Guasu Guavirá, foram alvos de ataques no município de Terra Roxa. Uma pessoa foi ferida a bala, enquanto outras duas acabaram atropeladas intencionalmente. Os ataques, que teriam sido cometidos por fazendeiros, tiveram início após uma ação de retomada de terras pelas comunidades Arapoty e Arakoé.
- Ceará: também em julho, no dia 18, integrantes do povo Anacé foram atacados durante a madrugada em uma área que reivindicam no município de Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza. De acordo com o Cimi, entre 20 e 30 agressores dispararam contra os indígenas. Cerca de 46 famílias, que vivem no local de 2022, tiveram barracos e pertences destruídos. Ninguém ficou ferido.
- Rio Grande do Sul: no dia 10 de julho, cerca de 24 horas após famílias caingangue ocuparem uma área que afirmam ser seu território originário no município de Pontão, pessoas armadas invadiram a área e dispararam contra a comunidade. Quatro dias depois, um veículo dos indígenas foi incendiado. Ninguém ficou ferido. A comunidade Pekuruty, no município de Eldorado do Sul, foi alvo de disparos de armas de fogo no dia 13 de julho. Em agosto, novas ameaças foram feitas a lideranças, e garrafas de vidro foram arremessadas contra a comunidade por motoristas de veículos que passaram pela BR-290.
- Mato Grosso do Sul: antes do conflito no sábado em Douradina, no dia 15 de julho, uma área retomada pelo povo Guarani Kaiowá foi invadida na Terra Indígena Dourados-Amanbaipeguá, no município de Caarapó. Ao menos uma pessoa ficou ferida por disparos de arma de fogo, segundo o Cimi.
- Pará: um grupo de indígenas Parakanã denunciou que foi ameaçado e mantido como refém no dia 10 de julho, em São Félix do Xingu, na Terra Indígena Apyterewa. Os parakanãs relataram que foram abordados por homens armados e com os rostos cobertos enquanto colhiam cacau. Os criminosos deixaram a área antes da chegada de agentes da Funai, da Polícia Federal e da Força Nacional
Fonte: O GLOBO
0 Comentários