Texto faz mais concessões a governadores que a proposta inicial de Rodrigo Pacheco e ainda precisa de aval da Câmara

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, durante votação de projeto de negociação da dívida dos estados — Foto: Brenno Carvalho/Agência O Globo

O Senado aprovou ontem o projeto de lei de iniciativa do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que trata da renegociação da dívida dos estados. O placar de 70 votos a 2 mostrou amplo apoio ao projeto que alivia as contas dos governadores, mas, para economistas, o texto — que ainda vai passar pela Câmara — tem aspectos negativos, como estender a todos os estados o incentivo a gastos com novos investimentos em troca de cortes nos juros dos financiamentos das dívidas com a União.

O projeto reverte parte dos juros em investimentos nas próprias unidades da federação e permite o uso de ativos, como estatais, para abater o estoque da dívida. Além disso, permite o pagamento em até 30 anos. O texto aprovado ficou ainda mais benéfico aos estados em relação à proposta inicial do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

Atualmente, a dívida dos estados com a União é de cerca de R$ 760 bilhões, mas é altamente concentrada em apenas quatro entes federativos: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul — os três últimos estão no Regime de Recuperação Fiscal (RRF).

Desde o ano passado, os governadores buscam melhores condições de pagamento dos compromissos, que, pela regra atual são corrigidos por IPCA (índice oficial de inflação) + 4% ou pela Taxa Selic (taxa básica de juros, atualmente em 10,5% ao ano), o que for menor.

Tarcísio de Freitas (SP), Romeu Zema (MG), Eduardo Leite (RS) e Claudio Castro (RJ), governadores dos estados que concentram a maior parte da dívida de entes federativos com a União — Foto: Gustavo Mansur/ Palácio Piratini

De acordo com a regra do projeto aprovado, a dívida continua a ser corrigida pela inflação. Mas o juro real vai sendo reduzido de acordo com diferentes critérios. Assim, caso o estado consiga se enquadrar em todos os critérios criados, a tendência é que o governo federal passe a receber apenas o equivalente ao IPCA.

O projeto divide os 4% cobrados em juro real atualmente em diferentes destinações. Em qualquer cenário, parte desse dinheiro será destinado a um fundo de equalização, que vai prover recursos a todos os estados — mas que tem como foco os que não têm grandes dívidas.

Atraente para todos

A proposta original apresentada pelo presidente do Senado abria caminho para abatimento de dívida caso o estado usasse os recursos para investir ou repassasse à União ativos, como empresas estaduais.

De acordo com o texto aprovado ontem no Senado, se um estado não tem ativos para repassar, ele pode “fatiar igualmente” os 4% de correção: desse total, 2 pontos percentuais seriam para investimentos e 2 pontos para o fundo de equalização.

Caso o estado disponha de ativos equivalentes a 10% da dívida, terá direito a um perdão equivalente a 1 ponto percentual do juro da dívida. Os 3 pontos restantes serão divididos igualmente entre o fundo equalizador e investimento.

Se o estado tiver um volume maior de ativos a repassar para a União, equivalente a 20% do débito, terá direito a um perdão de até 2 pontos percentuais do juro da dívida. O restante é dividido entre o fundo equalizador e os investimentos.

'Caixa de Pandora aberta'

Silvio Campos Neto, sócio e economista da Tendências Consultoria, avalia que “na essência”, as medidas são ruins, por incluírem ativos duvidosos para abatimento da dívida, “empurrando um problema de governos estaduais para a União.

— Outro ponto é a renegociação do saldo remanescente que pode ser corrigido só pela inflação. A União vai acabar arcando com a diferença entre o custo efetivo de financiamento do mercado e a correção, aumentando a dívida pública da União.

Claudio Frischtak, economista e líder da Inter.B Consultoria — Foto: Fernando Lemos/Agência o Globo

Claudio Frischtak, presidente da Inter.B Consultoria Internacional de Negócios, afirma que a questão da renegociação das dívidas dos estados tem um problema de origem. Para ele, o Ministério da Fazenda “abriu a caixa de Pandora” ao admitir a medida, com as propostas que surgem cada vez mais benéficas aos estados endividados:

— A ideia de estender a todos os estados é mais palatável politicamente, mas é um erro matricial trocar dívida por um investimento que não existe, com taxa de retorno social negativa. É um Estado capturado pelas emendas parlamentares.

'Ilusão de solução'

A versão final do texto foi proposta em destaque no plenário pelo senador Marcelo Castro (MDB-PI), de modo a privilegiar os estados menos endividados.

O projeto original já incluía repasse de ativos à União, mas as mudanças feitas tornam o projeto atraente inclusive para os estados menos endividados. Segundo o relator, Davi Alcolumbre (União-AP), a alteração visava se antecipar a um possível impasse entre a União e os estados sobre o valor dos ativos entregues.

Também pela emenda do senador Marcelo Castro a maior parte da divisão do fundo (80%) será feita com base na regra do Fundo de Participações dos Estados (FPE). Os 20% restantes terão critério de rateio um cálculo que leva em conta a dívida consolidada e a receita corrente líquida. O FPE privilegia estados mais pobres.

Alcolumbre incluiu a possibilidade de estados endividados usarem seus ganhos futuros com o fundo criado pela reforma tributária para viabilizar incentivos fiscais regionais, para quitar parte de seus débitos com a União. Bahia, São Paulo e Minas Gerais terão as maiores fatias do fundo.

Os senadores Davi Alcolumbre e Marcelo Castro — Foto: Agência Senado

Ontem, Pacheco disse que o Regime de Recuperação Fiscal (RRF), a outra opção para estados endividados), “é uma ilusão de solução em vez de solução efetiva”.

— (Gostaria de) pedir à Câmara dos Deputados, ao presidente Arthur Lira que, ao receber essa matéria, o trate com a devida prioridade, porque de fato é um problema nacional muito grande a ser resolvido — disse ele.

Teto de gastos flexibilizado

Uma das contrapartidas de negociações anteriores, o teto de gastos dos estados, também foi flexibilizado. Em 2024, poderão gastar livremente. Depois, o teto será atualizado pelo IPCA mais até 1% real, excluindo os gastos obrigatórios de saúde educação.

Em relação aos estados que estão no RRF, o projeto aprovado é mais vantajoso do que o texto original. Se resolverem migrar, esses entes terão uma escada de acesso ao Propag, com a redução dos valores de parcela ao longo de cinco anos. Os valores seriam de 20% no primeiro ano e subiriam 20 pontos percentuais a cada ano. Minas Gerais também tenta entrar no regime.

Recuo em mudança na RCL

Em seu primeiro relatório, Alcolumbre também havia incluído uma mudança no conceito da Receita Corrente Líquida (RCL) para retirar receitas eventuais, como royalties, outorgas pagas por concessões, dividendos de estatais e valores decorrentes de programas especiais de recuperação fiscal.

A RCL é usada para aferir o piso de gastos em saúde e também o montante das emendas parlamentares. O dispositivo, porém, foi retirado da versão que está sendo discutida no plenário do Senado, sob a justificativa de que foi um pedido do governo.

O que pode ser entregue à União

Em relação aos ativos que podem ser usados para o abatimento da dívida no âmbito do Propag, o texto aprovado cita sete opções, caso haja concordância da União, além da transferência de valores em moeda corrente ao Tesouro Nacional:
  • transferência de participações societárias em empresas estatais, desde que a operação seja autorizada mediante lei específica tanto da União quanto do Estado;
  • transferência de bens móveis ou imóveis, desde que haja manifestação de aceite por ambas as partes e a operação seja autorizada mediante lei específica do Estado;
  • cessão de créditos líquidos e certos do Estado para com o setor privado, desde que previamente aceitos pela União
  • transferência de créditos do Estado junto à União, reconhecidos por ambas as partes;
  • cessão de créditos inscritos na Dívida Ativa da Fazenda Estadual para a União, caso acordado entre as partes, com limitação de 10% do valor da dívida;
  • cessão de outros ativos que, em comum acordo entre as partes, possam ser utilizados para pagamento das dívidas, nos termos do regulamento.
  • cessão de parte ou da integralidade do fluxo de recebíveis do Estado junto ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR)
Segundo o texto, os ativos poderão ser utilizados para o pagamento da dívida em até 120 dias a partir da publicação da lei. No caso da transferência de participações societárias, bens móveis e imóveis e “outros ativos”, o prazo refere-se à comunicação formal do estado à União de intenção de transferência do ativo. Nessa comunicação, o governo estadual deve propor as condições de transferência e o valor do ativo.

Regra de despesa

O projeto ainda prevê que os estados que ingressarem no programa terão prazo de 12 meses, a partir da assinatura do aditivo contratual, para instituir regras e mecanismos anuais para limitar o crescimento das despesas primárias. O texto estabelece que o teto consideraria como teto a variação do IPCA, acrescida ou não de um porcentual, conforme as seguintes regras:
  • zero, caso não tenha ocorrido aumento real na receita primária no exercício anterior;
  • 50% da variação real positiva da receita primária apurada, caso o Estado tenha apurado resultado primário nulo ou negativo.
  • 70% (setenta por cento) da variação real positiva da receita primária apurada, caso o Estado tenha apurado resultado primário positivo.
O relator do projeto, senador Davi Alcolumbre (União-AP), também flexibilizou essa parte, ao retirar do teto os pisos de saúde e educação, o fundo de equalização federativa, transferências da União e fundos especiais, como do Poder Judiciário e do Poder Legislativo.


Fonte: O GLOBO