Apoiada por países ocidentais, invasão do território russo é vista por analistas como golpe duro ao regime de Vladimir Putin, mas resultado em longo prazo ainda é incerto

Tanque Leopard-1A5 fornecido pela Otan dispara enquanto soldados ucranianos realizam exercícios antes de se moverem para a linha de frente na região de Kharkiv — Foto: David Guttenfelder/The New York Times

A maior incursão transfronteiriça apoiada pelo Ocidente desde o início da guerra na Ucrânia, em 2022, começou na semana passada, quando o Exército ucraniano invadiu a região de Kursk, a pouco mais de 500 km de Moscou, e provocou a retirada de dezenas de milhares de civis do local. A operação surpreendeu até mesmo os aliados mais próximos de Kiev, incluindo os Estados Unidos, e testou os limites de como o equipamento militar ocidental pode ser usado no território russo.

Em abril, o Congresso americano aprovou uma legislação que incluía US$ 61 bilhões (R$ 334 bilhões) em assistência militar para a Ucrânia. A medida foi tomada apenas alguns dias após o diretor da CIA, William Burns, alertar que o país corria o risco de perder a guerra ainda este ano caso não recebesse o apoio dos EUA. Os armamentos chegaram para as forças ucranianas num momento delicado, com escassez de pessoal e recursos no campo de batalha, e foram enviados com uma ressalva: o Exército até poderia usá-los contra a Rússia, mas apenas para defender a cidade ucraniana de Kharkiv.

Por isso mesmo, na madrugada da última quarta-feira, autoridades americanas receberam com surpresa a notícia de que mais de mil soldados ucranianos haviam cruzado a fronteira no dia anterior, equipados com defesas aéreas móveis e equipamentos de guerra capazes de bloquear o radar russo. Alguns dirigiam veículos blindados enviados pela Alemanha e pelos EUA – ação que, apesar das restrições impostas, não gerou reações imediatas por parte da administração do líder americano, Joe Biden, e de outros aliados europeus.

Ao New York Times, autoridades dos Estados Unidos disseram que não foram informadas formalmente sobre a missão de “alto risco”. Ainda assim, na quinta-feira, o Pentágono declarou que a ofensiva movida pela Ucrânia fez um uso “aceitável” das armas dos EUA para atacar dentro da Rússia. Porta-voz do Departamento de Defesa americano, Sabrina Singh disse que, à medida que o Exército ucraniano detecta a realização de ataques na fronteira, “eles devem ter a capacidade de responder”.

— Vamos continuar a apoiar a Ucrânia com as capacidades e os sistemas de que precisam — disse Singh em entrevista coletiva. — Não sentimos que isso seja de forma alguma uma escalada. A Ucrânia está fazendo o que precisa para ter sucesso no campo de batalha.

Oficiais alemães adotaram um tom semelhante. Ao Washington Post, um porta-voz do Ministério da Defesa disse que o objetivo declarado de Berlim é “apoiar a Ucrânia em sua luta defensiva contra o agressor russo”. A mesma fonte relembrou ao jornal americano declarações anteriores que reafirmam o direito ucraniano, “sob a lei internacional, de se defender contra esses ataques”. Políticos mais conservadores na Alemanha deram apoio ainda mais explícito à iniciativa de Kiev, validando o uso de armas alemães em território russo.

— A questão de saber se armamentos ocidentais estão envolvidos não surge porque, após serem entregues à Ucrânia, eles se tornam armamentos ucranianos — disse o coronel aposentado e parlamentar alemão Roderich Kiesewetter ao Politico.

Mapa dos avanços da Ucrânia na Rússia — Foto: Editoria de Arte

Embora não esteja claro quais armas Kiev tem utilizado na invasão do território russo, a mídia russa relatou que veículos de infantaria blindados Bradley, dos Estados Unidos, e Marder, da Alemanha, estavam presentes. À imprensa alemã, o parlamentar Marcus Faber disse que a Ucrânia estava livre para usar “todos os materiais” doados pelo país, incluindo tanques Leopard-2 (dos quais 58 foram doados até julho).

A imprensa do Reino Unido noticiou que tanques Challenger 2 britânicos foram usados na ofensiva contra o território russo, segundo informações da rede de televisão Sky News. Se confirmado, seria a primeira vez que tanques britânicos — operados por soldados ucranianos — foram usados em combate em território russo. O Ministério da Defesa em Londres não deu detalhes sobre a operação, mas reafirmou que a Ucrânia é livre para usar armas britânicas em território russo, de acordo com a política do governo.

Para a Rússia, a invasão provocou uma espécie de ruptura: o celebrado estado de segurança que o presidente Vladimir Putin havia construído desmoronou, e a ideia de que a maioria dos russos poderia continuar com suas vidas normais enquanto ele travava a guerra foi posta em questão. Ao todo, a Ucrânia avançou mais de 11 quilômetros dentro do território russo, capturou dezenas de soldados inimigos e forçou a saída de mais de 132 mil civis da região. Apesar disso, o resultado a longo prazo ainda é incerto – e, para analistas, dependerá em parte da corrida pela produção de armas e munições, área em que Moscou aparece com larga vantagem.

Artilharia, drones e mísseis

Segundo o think tank americano Council on Foreign Relations (CFR), o fogo de artilharia responde por cerca de 80% das baixas em ambos os lados da guerra entre Rússia e Ucrânia. Na avaliação do grupo, apesar da retomada de ajuda dos Estados Unidos, a desvantagem ucraniana no setor não deve ser eliminada. Isso porque, de acordo com estimativas de inteligência da Otan, a aliança militar ocidental, a Rússia está a caminho de produzir quase três vezes mais projéteis de artilharia este ano (cerca de 3 milhões) do que os EUA e a Europa juntos (cerca de 1,2 milhão).

Enquanto dezoito membros da Otan se comprometeram a destinar pelo menos 2% do PIB no investimento em defesa este ano, a Rússia usará 6% para essas despesas. Ainda segundo o CFR, os EUA e a Europa deverão fabricar 2,6 milhões de projéteis por ano até 2025 – o que reforça a necessidade de mais investimento ocidental na indústria. Ainda que a Ucrânia também esteja se preparando para produzir sua própria munição, levará tempo para que as linhas de produção funcionem.

Já com relação aos drones, a vantagem inicial de Kiev no setor compensou parcialmente as deficiências das forças ucranianas em artilharia, embora a maioria deles não seja capaz de causar tanto dano quanto um projétil. Conforme apontado pelo CFR, a Ucrânia possui uma indústria doméstica de drones que, segundo o Ministério de Indústrias Estratégicas do país, é capaz de produzir 2 milhões de modelos ao ano. O secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, disse que aliados também planejam fornecer mais um milhão de drones à Ucrânia neste ano.

Ainda assim, as forças ucranianas têm perdido cerca de 10 mil drones por mês, já que muitos realizam missões de ataque em uma só direção. A Rússia, por outro lado, inicialmente dependia dos drones kamikaze Shahed do Irã, mas agora construiu uma fábrica capaz de produzir de 400 a 500 Shaheds por mês. O CFR pontua que não há bons dados disponíveis sobre a produção de drones russos, mas que o país alcançou paridade com a Ucrânia em termos de qualidade e quantidade – e que a indústria americana não é capaz de ajudar.

Para analistas, a defesa aérea é uma das áreas onde a tecnologia dos EUA é de ponta. Em abril, Washington também confirmou ter entregue mísseis táticos de longo alcance às forças ucranianas – equipamento que, até então, o governo Biden se recusava a fornecer para a Ucrânia. Chamados ATACMS (Sistemas de Mísseis Táticos do Exército), eles foram “discretamente” incluídos no pacote de ajuda repassado a Kiev no início daquele mês, segundo Garron Garn, porta-voz do Pentágono.

Os Estados Unidos enviaram secretamente uma nova versão de longo alcance do sistema ATACMS para a Ucrânia em abril de 2024 — Foto: Exército dos EUA/The New York Times

Segundo a CNN, Biden resistiu ao envio de mísseis de longo alcance por preocupação com a agilidade da produção do armamento, que precisa de “componentes complexos” para ser feito. A empresa que o fabrica faz cerca de 500 unidades por ano. A reavaliação da decisão ocorreu, porém, após a aquisição e uso de mísseis balísticos norte-coreanos pela Rússia contra a Ucrânia, além dos ataques à infraestrutura civil ucraniana. Diante disso, os EUA passaram a trabalhar nos bastidores para comprar mais mísseis e preencher os estoques dos militares americanos.

Do lado russo, o Kremlin aumentou a produção do míssil balístico Iskander-M (saindo de 7 para 30 por mês) e do míssil de cruzeiro Kh-101 (de 13-30 para 100-115 mensalmente). A Rússia também comprou mísseis balísticos de curto alcance Fareh-110 e Zolfaghar do Irã.

Linha de frente

Apesar da crescente importância dos mísseis e drones, a quantidade de militares permanece como fator essencial. Segundo o CFR, a Rússia teve pelo menos 315 mil soldados mortos ou feridos desde o início da guerra – mas conseguiu aumentar o tamanho de suas forças armadas nesse período. Apenas no ano passado, de acordo com o general americano Christopher Cavioli, as tropas de linha de frente na Ucrânia avançaram de 360 mil para 470 mil soldados. A Inteligência britânica relata que o Exército russo tem recrutado mais de 30 mil homens por mês.

A Ucrânia, por outro lado, tem cerca de 600 mil militares ativos, com apenas 200 mil desdobrados na linha de frente – muitos dos quais estão lá desde o início da guerra. Em fevereiro, Zelensky disse que 31 mil soldados do país tinham sido mortos durante o conflito, mas o número real é provavelmente muito maior. Em abril, o mandatário ucraniano reduziu a idade mínima para o alistamento de 27 para 25 anos. Ainda assim, dizem analistas, levará meses para que as fileiras da Ucrânia sejam substancialmente expandidas, já que os novos alistados precisam passar por semanas de treinamento. (Com New York Times)


Fonte: O GLOBO