Fontes em Kiev e Washington confirmam retirada de alguns militares de território ucraniano e realocação em solo russo, mas tentam entender impacto prático para o conflito geral

Russos capturados pelas tropas de Kiev durante invasão de Kursk, transportados na região de Sumy — Foto: Roman Pilipey/AFP

A Rússia começou a redirecionar parte de suas tropas na Ucrânia para repelir a invasão lançada por Kiev contra o oeste de seu território. O movimento estratégico, relatado por fontes ucranianas e dos EUA na terça-feira, é um dos mais recentes em uma série de medidas tomadas por Moscou diante da operação militar dentro de suas fronteiras: a região de Belgorod decretou estado de emergência nesta quarta-feira, diante da intensificação de bombardeios e dos impactos da invasão à vizinha Kursk.

Autoridades americanas e ucranianas reportaram o movimento das tropas russas, mas ainda tentam avaliar o impacto que isso pode ter no campo-de-batalha. Dmytro Lykhovii, um porta-voz do Exército ucraniano, disse à mídia ucraniana na terça-feira que a Rússia havia movido algumas unidades de Zaporijia e Dnipro, no sul da Ucrânia, para outras áreas de combate, incluindo Kursk. Uma autoridade dos EUA, falando sob condição de anonimato, disse que Moscou havia retirado um pequeno número de tropas da Ucrânia, mas não especificou sua localização ou o número de soldados envolvidos.

As autoridades russas tentam desenhar uma resposta eficaz à invasão ucraniana, que mantém tropas na região de Kursk há mais de uma semana, onde reivindicam ter tomado o controle de 74 localidades. O comando militar ucraniano disse ocupar uma área de 1 mil km² de território russo, enquanto um estudo do Instituto para o Estudo da Guerra (ISW, na sigla em inglês) apontou na segunda-feira que o domínio ucraniano seria de 800 km².

Nesta quarta-feira, a região russa de Belgorod decretou estado de emergência devido aos intensos bombardeios das forças ucranianas, que prosseguem com a ofensiva de Kursk. Ao anunciar a determinação, o governador Viacheslav Gladkov classificou a situação como "extremamente difícil e tensa".

"Casas foram destruídas, civis morreram e ficaram feridos", escreveu Gladkov, em uma publicação no Telegram. "Para garantir maior proteção à população e prestar apoio adicional às vítimas, o estado de emergência será instaurado a nível regional a partir de quarta-feira".

Veículo militar ucraniano em operação em Sumy, que faz fronteira com a região russa de Kursk — Foto: Roman Pilipey/AFP

Analistas dizem que um dos objetivos da ofensiva ucraniana é afastar as forças russas das linhas de frente na Ucrânia e aliviar as tropas que lutam para repelir os ataques em seu próprio território. Mas é muito cedo para dizer se os últimos movimentos de tropas russas permitirão que isso aconteça.

Em particular, há poucos sinais de que Moscou tenha realocado tropas do leste da Ucrânia, onde a Rússia tem avançado constantemente nos últimos meses. Em vez disso, o Exército Russo parece ter enviado reforços retirados principalmente de unidades menos prontas para o combate, do norte da Rússia e Ucrânia.

— A estratégia russa é evitar o máximo possível retirar unidades na direção de Donetsk — disse Serhii Kuzan, presidente do Centro Ucraniano de Segurança e Cooperação, um grupo de pesquisa independente, referindo-se à região no leste da Ucrânia que está na linha de frente. — Os russos estão relutantes em fazer isso, porque isso colocaria em risco todos os ganhos de sua campanha ofensiva.

O Instituto para o Estudo da Guerra avaliou que as autoridades russas "parecem estar confiando amplamente em recrutas russos e elementos de algumas unidades militares regulares e irregulares retiradas de setores menos críticos da linha de frente para lidar com a incursão ucraniana em andamento".

Autoridades militares ucranianas disseram que, apesar da operação contra o território russo, ataques na região de Donetsk lançados por Moscou continuaram inabaláveis ​​na semana passada. As tropas russas continuaram a avançar lentamente para dentro ou em direção às cidades da linha de frente de Chasiv Yar, Niu York, Pokrovsk e Toretsk.

Oleksandr Bordiian, um porta-voz da 32ª Brigada Mecanizada Separada, que está lutando perto de Toretsk, disse à mídia ucraniana na terça-feira que os ataques da Ucrânia na região de Kursk "ainda não tiveram nenhum impacto na densidade de ataques e bombardeios" contra as tropas na região.

Ataque ucraniano começou pouco após o amanhecer; a princípio, até mil soldados ucranianos invadiram a região de Kursk com cerca de trinta blindados, segundo Moscou — Foto: Editoria de Arte/O Globo

Versões divergentes

No oitavo dia de invasão ao território russo, a situação no solo é incerta. O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, afirmou nesta quarta-feira que seu Exército continua a avançar no país inimigo, enquanto autoridades militares da Rússia dizem ter repelido tentativas de infiltração na região de Kursk.

"Estamos avançando. Um a dois quilômetros em áreas diferentes desde o início do dia. E mais de 100 militares russos adicionais foram capturados no mesmo período", disse Zelensky, no Telegram. "Isso irá acelerar o retorno para casa de nossos meninos e meninas".

Na terça-feira, Zelensky havia afirmado que "combates difíceis e intensos" estariam ocorrendo na zona fronteiriça, e que "inspeções e medidas de estabilização" estariam em andamento, nesta que já é a maior incursão de um exército estrangeiro em território russo desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Em um comunicado nesta quarta, o Exército russo disse que "repeliu" avanços ucranianos que tentavam se infiltrar “profundamente” na região fronteiriça de Kursk. De acordo com os militares russos, a operação apoiada por aviação, drones e artilharia, repeliu "tentativas de grupos móveis inimigos a bordo de veículos blindados de penetrar profundamente no território russo".

Até a segunda-feira, a Ucrânia controlava pelo menos 800 km² na região de Kursk, segundo uma análise da AFP com base em dados fornecidos pelo Institute for the Study of War — Foto: Editoria de Arte/O Globo

O comandante do Exército ucraniano, Oleksander Syrsky, afirmou que as tropas avançaram até três quilômetros em algumas áreas durante a terça-feira em alguns pontos e tomaram o controle de mais 40 km². A Ucrânia anunciou na segunda-feira que controlava 1.000 km² do território russo.

O governador regional russo, Alexei Smirnov, admitiu, no entanto, que as forças do país perderam o controle de 28 localidades e disse que a operação abrange uma área de 40 km de largura e 12 km de profundidade em território russo. Para efeito de comparação, a Rússia ganhou 1.360 km² de território ucraniano desde 1º de janeiro, segundo cálculos da AFP com base em dados do ISW.

Após ganhos rápidos no primeiro dia de sua ofensiva, os avanços ucranianos parecem ter diminuído, de acordo com mapas do campo de batalha compilados por analistas independentes. O Ministério da Defesa da França disse na segunda-feira que as forças de Kiev "parecem ter reduzido o ritmo de seu avanço inicial, mas estão consolidando suas posições".

Emil Kastehelmi, analista do Black Bird Group, sediado na Finlândia, que analisa filmagens do campo de batalha, disse na terça-feira à noite que um ataque de tropas ucranianas em Giri, uma vila a sudeste do ataque ucraniano inicial, provavelmente foi repelido. "Eles sofreram perdas significativas e provavelmente tiveram que recuar", escreveu nas redes sociais.

'Paz justa'

— A Ucrânia não deseja anexar nenhum território da região de Kursk — declarou o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores ucraniano, Georgiy Tykhy, na terça-feira. Ele acrescentou que a operação militar cessará se Moscou aceitar uma "paz justa".

Desde fevereiro de 2022, a ex-república soviética enfrenta a invasão de Moscou, que ocupa até 20% do território ucraniano, incluindo a península da Crimeia, anexada em 2014. As negociações entre Kiev e Moscou estão bloqueadas, devido à dificuldade de conciliar as exigências de cada parte.

Zelensky disse querer elaborar um plano antes de novembro, data das próximas eleições presidenciais nos Estados Unidos - um aliado vital para Kiev -, que serviria de base para uma futura cúpula de paz que teria a participação do Kremlin.

O presidente russo, Vladimir Putin, impôs como condição para as negociações que Kiev ceda os territórios ocupados pelas tropas de Moscou e renunciasse à adesão à Otan, exigências inaceitáveis para os ucranianos e seus aliados ocidentais.

O líder russo acusou na segunda-feira a Ucrânia de executar a operação em Kursk para "melhorar a sua posição em futuras negociações".

Injeção de moral

A incursão ucraniana forçou a retirada de mais 120 mil pessoas. Pelo menos 12 civis morreram e mais de 100 ficaram feridos, segundo as autoridades regionais russas. Para as forças de Kiev, após meses na defensiva e cedendo território para um inimigo mais numeroso e com mais armas, a operação é uma injeção de moral.

— Não houve vitórias significativas na Ucrânia nos últimos meses. Apenas os russos estavam avançando — declarou à AFP, na condição de anonimato, um comandante das forças de Kiev na região Sumy.

Outro militar da região que participou na ofensiva disse à AFP que "os russos fugiram" quando os ucranianos entraram em Kursk. Com otimismo, ele afirma que permanecerão no território. (Com NYT e AFP)


Fonte: O GLOBO